top of page

Entre a Foice e o Martelo

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 8 de jul. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de jul. de 2019



Dias atrás eu fui a um evento acadêmico, um desses eventos que os alunos só vão por que estão atrás de certificados de atividades extracurriculares e os pesquisadores só vão para abrilhantar seu currículo Lattes. Evidentemente, eu estava atrás de uma oportunidade de abrilhantar meu Lattes. Assim sendo, tive meu trabalho distribuído pelos coordenadores do evento em uma sala onde faria a exposição oral de minha pesquisa.


O interessante desses momentos de partilha, é que muitos dos que ali estão não estão preocupados com o que está sendo dito. Aproveita minutos antes de chegar a sua vez para dar aquela última revisada no que vão falar. Eu estava bem disposto a ouvir o que tinha para ser dito e foi aí que notei aquilo que achei ser digno de relato.


Logo de cara me levanta uma personagem que poderia ser facilmente descrita como uma caricatura do que direitistas têm para estudantes de ciências humanas: um sujeito tinha com um estilo totalmente despojado, com vários adereços indígenas nos braços. Usava uma camiseta com uma imagem do Karl Marx e não limitou a sua apresentação a uma projeção de slides, como todos os demais, mas fez algumas anotações com uma letra garranchada no quadro antes de se apresentar como doutorando bolsista em ciências sociais. Pode parecer que há um exagero caricatural, mas juro pelas barbas de Marx que aquele ser era tão real quanto você e eu.


Sua apresentação consistia em uma explicação superficial de sua tese, que parecia ser algo muito elaborado que ninguém na sala teria capacidade de entender e que levaria muitíssimo tempo para explicar. Essa conclusão foi certificada quando ele falou pela quinta vez que estava falando bem por alto.


Mas pode ser que haja de fato algo muito profundo em sua tese que eu não tenha a capacidade de compreender. Sua tese consistia na ideia de que havia uma nova direita que era uma terrível ameaça para o Brasil, uma direita que temia a classe dos intelectuais que deveriam pensar o Brasil. Por intelectuais, entendam que ele falava da classe dele, pessoas que faziam doutorados complexos que os demais não conseguiam entender. Gente como ele que citava autores e termos complexos, o que dava um ar bastante profundo a sua teoria.


Tenho um certo receio de explicar a sua tese e acabar explicando mal, afinal, foi um resumo tão superficial e era de uma complexidade tão grande que talvez aconteça de eu não apresentá-la de fato como ela é. Mas, antes disso, acho digno de menção alguns dos termos que ele utilizou como o fato de haver um arquétipo como imperativo categórico de uma realidade social. Confesso que inclinei a minha cabeça com vergonha da minha burrice. Tinha certeza de que estudei bastante os arquétipos do inconsciente coletivo do Dr. Jung, ainda tinha memórias de sair do quarto totalmente despenteado depois de ter passado três horas seguidas refletindo sobre a razão prática de Kant e me lembrava vagamente de que o fato social era uma ideia de Durkheim, mas nunca, nunca, tive a argúcia de perceber que esses três pensadores, um psicanalista, outro idealista e outro positivista, falavam em conjunto. Como eu sou burro!


Mas apesar da minha incapacidade cognitiva, vou tentar relatar o que pude captar de sua apresentação tão didática de uma tese tão elaborada. Para ele, a nova direita era um conjunto de várias direitas com objetivos diferentes: em primeiro lugar, liberais que querem um Estado micro e macro, sujeitos que querem que o Estado seja limitado para lhes permitir uma liberdade econômica, mas que precisa ser forte para oprimir a população com um exército; em segundo lugar, fanáticos religiosos que querem o seu Deus governando tudo com os parâmetros da sua religião; em terceiro lugar, neoconservadores que sentem falta de uma época onde tudo era melhor, mas estes se diferem de verdadeiros conservadores, pois geralmente sentem falta de um passado em que não viveram (como o Neymar); por fim, o quarto e último elemento é uma classe média que não quer que os pobres tenham acesso ao que elas têm.


Assim, a nova direita era constituída de novas direitas que juntas eram um terrível mal para a sociedade e que unidas queriam derrubar a classe intelectual que fazia bem a todo mundo, cortando as verbas de bolsas para pesquisas de leituras tão incríveis como a dele. De fato, com cortes de orçamento, como os intelectuais que fazem uma leitura tão incrível da sociedade farão? E o que será da sociedade sem essa compreensão? Aplaudi sua apresentação de forma efusiva.


Sentado o doutorando, outros apresentadores foram fazendo suas exposições. A primeira mostrou sua pesquisa em que vinha consultado obras literárias regionais para demonstrar as formas como a mulher era representada. Um trabalho muito importante que mostra o quanto a classe oprimida feminina deve se engajar e se unir para assumir a narrativa do empoderamento feminino. Achei um trabalho revolucionário, aplaudi mais uma vez.


Mas qual não foi meu espanto ao ver o doutorando levantar a mão e falar um monte de nomes de filósofos complexos para afirmar, no fim, que o trabalho da pesquisadora faltava um recorte muito especial: uma ponderação das classes. Não adiantava nada elencar as figuras femininas na literatura se ela não distinguisse quais dessas mulheres são ricas e quais delas são pobres. Com isso, aprendi que o empoderamento feminino deve se dar com as mulheres, mas as pobres, as ricas ficam num limbo entre o ser mulher pobre e o ser homem. Fiz um questionamento mental sobre onde ficaria o homem pobre, era um opressor homem ou um oprimido proletário?


Bola para frente e a apresentação seguinte veio com ares de modernidade: a pesquisadora falava sobre como utilizar as novas tecnologias na educação. Aplaudi mais uma vez, mas, também mais uma vez, o doutorando levanta para fazer suas colocações. Comentar sobre os trabalhos sempre trazendo uma sugestão é algo muito chique. Dá a ideia de mente aberta.


A colocação para esse trabalho foi uma abordagem de classes com referência a Paulo Freire para dizer que com todos os meios de comunicação, o aluno já tem todo conhecimento ao seu dispor, cabendo à classe dos professores fazer apenas um direcionamento, não um ensino. Achei aquilo genial! Por que me dou mais ao trabalho de preparar aulas se o aluno já sabe tudo por que tem acesso ao Google?


E a apresentação seguinte era a minha. Expus alguns pensamentos do pensador britânico G. K. Chesterton para analisar alguns trechos da obra O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, e assim apontar, como traçado por Harold Bloom, as influências daquele na obra deste. Coisa chata de quem quer entender a mente dos grandes homens, e não tem o bom senso de se colocar à disposição de mudar a sociedade.


Minha exposição consistia na ideia de Chesterton, em seu livro Ortodoxia, de que o homem criou várias filosofias e passou a avaliar a realidade por elas, como quem cria uma lupa para ver, mas que o britânico considerava algo que enlouqueceu a modernidade, pois ela só consegue ver agora através dessa lupa. Por exemplo, para ele, um positivista que passa a analisar tudo aos olhos da ciência, não consegue ter uma visão completa do mundo, pois nem tudo é fato científico, como o Amor, a Poesia e a bravura. Um racionalista que em tudo quisesse ver uma razão surtaria diante do ilógico, e o mundo está cheio de coisas ilógicas. Ou ainda, um marxista que em tudo quisesse ver uma luta de classes, logo enlouqueceria, pois veria o tempo todo uma luta e nunca poderia curtir no parque, seria alguém louco que só sabe falar disso.


A ideia de Chesterton é que devíamos recuperar o bom senso das fadas, daquelas histórias das babás (ou avós, como apontou Tolkien), que se importam com que é possível, pensável, como árvores que dão tigres pendurados pela cauda ao invés de maçãs. Que o mundo moderno era angustiante por suas filosofias reducionistas, mas que todos poderiam se maravilhar com uma borboleta, onde havia ainda um pouco de sanidade, e eram todos mesmos, os intelectuais, as babás, as avós e até as crianças. Para ele, todos tinham acesso ao mundo como ele é sem precisar mediar por leituras filosóficas complexas, a tradição era o conhecimento dos sábios ao acesso de todos, distribuídos pelas babás e pelas avós de forma democrática.


Como era de se esperar, o doutorando levantou a mão. Dessa vez disse que os contos de fadas não tinham nada de legal, mas que eram um mal na sociedade e que perpetuavam a tradição capitalista reforçando os preconceitos, pois as histórias sempre contavam a história de uma dama pobre que sonhava em ser princesa. O próprio livro que eu analisara estava cheio desses preconceitos e não era preciso ler para saber disso, pois estava na capa “O Retorno do Rei”, era preciso que um tirano rico viesse salvar todos.


Além da Gata Borralheira e da Bela (a da Fera), não consegui me lembrar de outra história em que a personagem fosse uma pebleia e, pelo que em consta, nenhuma das duas sonhava em ser princesa. Uma queria ir ao baile se divertir e a outra só salvar o pobre pai. E ainda, nenhuma das duas é pobre. Cinderela era maltratada pela madrasta, que vivia uma vidinha de classe média com suas irmãs legítimas, e Bela era filha de um comerciante francês (um burguês) que fazia longas viagens de negócio. Quanto ao apontamento sobre o terceiro livro de O Senhor dos Anéis, tenho certeza de que Aragorn passou os dois primeiros livros sendo confundido com um mendigo, só tendo sua linhagem real revelada na grande batalha, onde levanta a bandeira de sua casa e revela sua autoridade (de uma forma meio mística, aliás), mas não lembrava de uma menção monetária. Gondor estava em chamas, não parecia um bom negócio. Mas tudo bem, não sou um intelectual versado, talvez não tenha feito a leitura crítica correta dessas obras.


Minha ideia era apresentar uma compreensão de autores pouco comentados na academia, os muitos conhecidos já são citados em demasia (numa única sentença, inclusive). Mas o discurso contido na comparação foi a crítica de Chesterton a esses grandes intelectuais que detém a lupa de leitura da realidade, que as massas de direta ou de esquerda não tem acesso, mas da qual é possível medir o mundo inteiro. Chesterton achava uma visão bem pobre de um mundo tão complexo e cheio de possibilidades. Ele também era mais democrático, achava que bebês se encantavam com o mundo de uma forma que todos nós poderíamos fazê-lo. Mas talvez Chesterton, e consequentemente eu, sejamos sonhadores demais, que não se tocaram que grandes análises críticas é que vão mudar o mundo para melhor. Havia uma batalha acontecendo e só conseguia ver quem era capaz de ler a realidade no parâmetro crítico, com uma lupa, entre a foice e o martelo.

1 Comment


rosianesillva6
Aug 09, 2019

Definitivamente você tem que escrever um livro! Um texto escrito não para atacar ninguém , mas apenas com o intuito descrever, humildemente e ironicamente, tal fato. De facil leitura e compreensão com uma pitada de humor. Parabéns.

Like
Ragnarok.jpg

Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.

bottom of page