Bobby e os seus livros
- Carlos Neiva
- 13 de set. de 2024
- 7 min de leitura

Rita Lee cantou que era a ovelha negra de sua família. A coisa não deixa de ser engraçada se pensarmos que, na Bíblia, Jacó combinou com Labão que as ovelhas branquinhas pertenceriam ao sogro, enquanto as negras e manchadas seriam dele. O animal que não tivesse uma lã toda branca não rendia uma boa quantidade de lã branca – fácil de tingir – para confecção de tecido. Jacó, porém, era malandro e tratou de aumentar o número dos animais manchados a pontos de que seu rebanho era muito maior do que o de Labão.
Uma ovelha manchada no meio de um rebanho alvo, é sem dúvidas um grande problema, e prego que mostra a cabeça é quem vai tomar martelada. Quem não se encaixa no grupo, acaba por ser alvo de críticas, pois o normal é regra e tudo que passar disso é mal, mesmo que seja passando para cima.
No Brasil, por exemplo, alguns Estados têm mais condições que outros, e a educação destes poderia ser muito mais bem trabalhada. Porém, o Brasil insiste que a grade curricular seja nacional e padronizada. Todos devem estudar as mesmas coisas e do mesmo tanto. Isso acaba por nivelar por baixo estados que poderiam voar às alturas.
Entretanto, considerando apenas o rebanho de Jacó que era tão numeroso a ponto de render dois acampamentos, fora uma leva de presente para seu irmão Esaú. Nesse rebanho, uma ovelha negra não se sentiria excluída e também não seria destacada. Ou seja, alguém nunca é inadequado, pode estar apenas no ambiente que não combina consigo. É tudo uma questão de achar a sua tribo.
Eu sempre considerei que fui uma criança fora da curva, diferente das demais. Lembro-me claramente do estranhamento que causava em meus pais e familiares. Eu gostava da solidão e tinha desejo por conhecimento, além disso, era criativo. Não estou aqui querendo dizer que eu era algum tipo de pequeno gênio ou bebê índigo. Pelo contrário, eu era uma criança que foi exatamente criança. Deixei minha imaginação correr solta e admirei todas as novidades do mundo que eu ia descobrindo a cada dia.
Por causa do meu jeito, do meu estar constante no “mundo da lua”, fui apelidado de Bob, em referência ao desenho animado “Fantástico Mundo de Bobby”, no qual o pequeno Bobby dispunha de uma imaginação tremenda e criava cenários surreais imaginando coisas que os adultos diziam.
Lembro que gostava muito de histórias, e decorava rapidamente tantas quantas eu podia. Minha avó contava piadas pesadas e sujas – e eu não me refiro a um elefante na lama – e eu as ouvia e decorava, mesmo não entendendo nada do que queriam dizer. Sei de algumas até hoje. Quando aprendi a escrever, passei logo a fazer meus caderninhos de histórias. Falava sobre criaturas fantásticas e inventava mil aventuras onde eu era um poderoso herói. Também já fiquei do lado dos vilões e criei diversos planos para que eu dominasse o mundo, tal como Pink e o Cérebro.
Meu desejo mais antigo era ser escritor, e dedicar-me hoje a escrita com um público que me lê simplesmente porque gosta do que eu escrevo é comovente, e o pequeno Carlos ficaria chocado de ver que os anos vieram e essa semente continuou crescendo firme.
Queria escrever não só porque tinha imaginação em abundância, eu romantizei o ser escritor. Minha referência de intelectualidade eram os cientistas em seus laboratórios, como Dexter e Professor Utônio, ou os sábios em suas torres com seus antigos tomos, como Dr. Victor e até mesmo o vil Esqueleto. A síntese da intelectualidade era, para mim, o Visconde de Sabugosa. O boneco de sabugo de milho estava sempre na biblioteca, entrava dentro dos livros e possuía uma inteligência ampla, que também cobria o mundo da ciência experimental. Eu queria ser como o Visconde, tudo isso no meu fantástico mundo de Bobby.
Aprendi a ler e me tornei fissurado em leitura, lia rótulos, embalagens e panfletos. Decidi que queria ter livros, mas na minha casa não havia nenhum. Meu pai abandonou a escola quando seus irmãos mais novos o alcançaram na quarta-série. Minha mãe chegou a concluir o ensino médio, mas tornou-se dona de casa logo em seguida. Éramos uma família pobre, com meu pai caminhoneiro e nossa casa um pequeno barraco de três cômodos que meu avô mesmo construíra.
Porém, nem tudo estava perdido. Meus pais não tinham dinheiro, mas havia alguém que podia me dar o que eu desejasse: o Papai Noel. Então esperei o natal e escrevi uma carta pedindo ao Bom Velhinho que me desse um livro de presente. Assim, sem especificar, queria um livro qualquer, bastava ser um livro. Não aguentava mais ler a revista Sentinela dos testemunhas de Jeová que eles distribuíam de porta em porta. Queria algo mais consistente, o Visconde lia livros, não revistas.
Para minha surpresa, meus pais leram a minha carta – uma tremenda falta de educação ler a correspondência alheia – e ficaram indignados com o pedido. Meu irmão pediu um brinquedo, como toda criança normal. Já eu, mostrava ser um menino estranho, uma ovelha manchada. A indignação dos meus pais foi externada ao resto da família, e eu virei motivo de chacota para meus tios. “Pede outra coisa, um brinquedo, sei lá” ou ainda “Vai brincar. Criança tem que brincar”. Minha avó chegou a resgatar do Baú da Felicidade um livrinho da Branca de Neve que acompanhava um CD onde o Sílvio Santos lia a história. Tudo isso para que eu mudasse de ideia quanto ao meu pedido sem sentido.
Não guardo rancor algum deles, até os entendo na verdade, eu era um ponto fora da curva. Fui levado então para a loja Ipanema, a maior loja de brinquedos e materiais esportivos da cidade. A ideia era me inspirar a pedir outra coisa. Eu vi então um boneco do Visconde de Sabugosa, e ele vinha com seus livros. Decidi então trocar o pedido. Ganhei o outro modelo, um Visconde que falava quando você apertava a mão dele. Em qual órgão a gente consegue reclamar dos presentes entregues pelo papai Noel?
No natal seguinte, o shopping da capital caprichou na decoração de natal, eles montaram um trenzinho para as crianças e trouxeram animatrônicos dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Eu queria muito ir, mas minha mãe não tinha como me levar, afinal, não tínhamos carro. Foi então que ela me deu uma ideia genial: quando minha tia-avó, a irmã mais nova da minha avó, viesse visitar a irmã, eu pediria para ir com ela, pois essa tia morava em Goiânia.
O plano foi executado e deu muito certo, passei uma semana na casa dessa tia e ela me levou em muitos outros lugares, como parques, a casa do Papai Noel e até a escolinha dominical da sua igreja. Foi uma semana maravilhosa, digna de uma redação de como foram suas férias.
Mas, mesmo com tantas atividades, uma semana é muito tempo, e minha tia precisava trabalhar. Eu então tinha algumas horas sozinho, sendo cuidado pela empregada. Super gente boa e fã de filmes da Disney como eu, conversamos muito. Eu então saí explorando a casa da minha tia e fui até o sótão, onde achei uma caixa de livros. Dois me chamaram a atenção: “As caçadas de Pedrinho” e as fábulas do Monteiro Lobato. Sim, eu devo meu hábito de leitura ao grande escritor infanto-juvenil brasileiro.
Eu devorei aqueles livros, e isso chamou a atenção de minha tia, ela então me deu uma série de livros que lhes estava sobrando. Entre eles estava “As viagens de Gulliver”. Eu finalmente tinha o que queria e desde então, não parei de acumulá-los. Certa vez, conheci um padre que tinha uma estante cheia de livros, eu fiz então um juramento a mim mesmo de ter uma igual.
Hoje, eu tenho cinco estantes abarrotadas de livros e um cômodo só deles onde gosto de passar minhas horas. Porém, eles não estão só lá, estão no meu escritório e na minha sala, no meu carro e na minha mochila, na cozinha e no quarto. Enfim, os livros fazem parte do meu cotidiano e eu os tenho como amigos.
É claro que não li todos os livros que tenho, eles estão ali esperando para serem lidos, para serem consultados. Eles me lembram da minha ignorância e do quanto preciso aprender. Cada livro grita comigo e, aqueles que são lidos, fazem parte do meu fantástico mundo de Bob. Eu passo então a ter a amizade e os conselhos das melhores pessoas que viveram em toda a história da humanidade.
Um dia quero ter filhos e quero que meus filhos e sobrinhos possam, por minha causa, crescer em um ambiente onde os livros são comuns. Quero que eles possam tocá-los, conhecê-los e, por fim, amá-los. Se os livros fizerem parte da vida deles e eles verem que eu e outros adultos lemos, logo criarão gosto por ler e se tornarão ávidos leitores. Não quero que sintam a sede que senti, mas quero provocar o mesmo vício que tenho.
Uma criança só desenvolve o gosto pela leitura se vê seus pais e outros adultos lendo. No mundo onde todos ficam no celular, a criança considera livros algo tão alienígena como era para meus familiares décadas atrás. A criança, porém, que for incentivada pelo exemplo a ler, será uma grande pessoa no futuro, por ter criado um bom hábito de fazer uma coisa essencial que poucas pessoas fazem. Nosso mundo é digital, ele é praticamente apenas leitura, mas a maioria das pessoas não lê, portanto, os leitores serão os que dominarão o mundo.
Queria que as pessoas entendessem o bem que é a leitura. Já fui repreendido por um padre por ler demais na igreja. Ora, eu participava da missa normalmente, mas fora da liturgia eu dedicava alguns bons minutos a ler livros que me davam conteúdo para oração, que me davam assunto para conversar com Deus, a bíblia era um deles. Como falar com Deus sem ler sua Palavra? Seria praticamente um monólogo.
Enfim, ler é bom. As pessoas deveriam entender isso. Se todos fossem leitores, seríamos um rico rebanho de ovelhas manchadas que fariam de Jacó um homem rico e abençoado por Deus.