top of page

Sobre a amizade

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 17 de jul. de 2024
  • 7 min de leitura

Publicado originalmente em 2017.


Muito me incomoda como a palavra “amigo” vem sendo usada superficialmente, fazendo com que uma das coisas mais maravilhosas da vida humana perca o seu sentido. Já faz um bocado de anos desde que tomei por regra me retirar e evitar por completo qualquer rede social que definisse um vínculo de “Amigos”.


Quem pode ter três mil amigos? Quisera eu ter três mil amigos, eu pediria uma moeda de um real a cada um e teria, no fim, três mil reais. Mas ninguém pode ter três mil amigos, a não ser se por amigos se considerar uma lista de pessoas que fuxicam a minha vida particular e exibem a delas. Mas isso não é nem de longe o que realmente define um amigo.


Eclesiastes é de longe o livro mais pessimista que já li na vida. E olhe que já li muitos do tipo! Esse livro começa e termina afirmando que tudo debaixo do sol é vaidade, isto é, tudo é vazio e sem sentido. Mas nem mesmo um livro tão pessimista consegue denigrir o valor de um amigo. Isto porque o ser humano necessita de um amigo, mais do que qualquer outra coisa. É impossível viver sem um amigo. Um bom amigo é como um tesouro, dirá outro livro bíblico.


Amigo é para poucos. Ninguém pode ter muitos amigos, porque não passam de pessoas com quem você simpatiza, amigo mesmo envolve uma complementação muito maior. Como me disse um amigo muito caro a mim: “amigos são a família que podemos escolher”. De fato, amamos nossa família e sabemo-nos amados por ele, mas ninguém jamais pode escolher o pai, a mãe ou os irmãos. Eles foram sorteados na loteria da genética, ou melhor, eles foram dados por Deus. Mas os amigos, fomos nós quem buscamos e conquistamos.


Agora, com sinceridade, faça uma lista rápida na sua cabeça de quantos amigos de verdade você tem. Logo vai ver que não são tantos assim, mas não se preocupe, isso não quer dizer que você é má pessoa, mas simplesmente pessoa. Agora, se você conseguiu enumerar dezenas ou nenhum, devia se preocupar pois ou não sabe bem o que é amizade ou devia se amar mais, respectivamente. Explicarei a isto mais adiante.


Mas como se escolhe essa segunda família? O primeiro ponto é que não é intencional, acontece e, quando se percebe, a escolha já foi feita. Mas o que está por trás dessa espontaneidade? Está uma busca de si mesmo. Um amigo é, na verdade, um outro eu que posso amar fora de mim. Amizade é no fundo uma questão de autoestima: amo o outro porque somos iguais. Mas não confunda com egoísmo! O egoísmo é amar o próprio eu em si mesmo, utilizando do outro em vista do próprio eu. Na amizade, ama-se o eu no outro, de uma forma que fazer bem a ele, é fazer bem a si mesmo.


Uma pessoa egoísta, quando vê o sucesso de alguém que diz ser seu amigo, fica com inveja, porque queria que o seu eu em si fosse satisfeito. O amigo de verdade, fica feliz pela felicidade do outro, ainda que não ganhe nada com isso, mas só de ver o bem feito a sua contraparte, já sente-se satisfeito como se o obséquio tivesse sido prestado ao próprio. Não dá para fazer isso com tanta gente, e é por isso que amizade é para poucos.


É claro que até aí meu texto parece vazio da lógica cristã de amar o próximo como a ti mesmo, mas aí que entra um segundo ponto. Não basta que você ame o outro como o seu eu fora de si, é preciso que o mesmo aconteça de lá pra cá. Aristóteles é muito sábio ao chamar a amizade de virtude e ligá-la à virtude da Justiça. Pois, de fato, deve haver reciprocidade para que seja de fato uma amizade. Um ama o seu eu no outro, como dois anjos que só tem uma asa que se abraçam a fim de alçar voo.


Dessa forma, a amizade é mais nobre o quanto mais nobre forem os “eus” envolvidos. Pessoas virtuosas que se estimam mutuamente formam uma amizade mais duradoura do que amizades onde há um menor e um maior. Assim sendo, amizades onde se precisa se esforçar para ser aceito, onde existe um certo utilitarismo, ou onde simplesmente um deles (pior se forem os dois!) não possuem bom caráter, pois o mau caráter ou só ama a si mesmo, egoísta, ou não ama nem a si mesmo, de uma forma que o seu eu projetado lhe causa repulsa.


Outra coisa curiosa a respeito da amizade é que amigos são bem diferentes de amantes. C. S. Lewis utiliza uma pequena metáfora para explica-lo: amantes estão frente a frente e amigos estão lado a lado. Isso diz muito, amantes estão focados no próprio amor, por isso, seu assunto em uma conversa é o próprio amor que sentem um pelo outro. Já na amizade, os amigos amam um mesmo objetivo, de uma forma que o almejam juntos, unidos pelo amor que sentem um pelo outro, mas esse não é objeto da conversa, mas fator que a estabelece.


Explico: um casal de namorados fica falando do quanto se amam, o amor entre eles realiza-se em si; amigos amam algo em comum, vamos supor, uma determinada modalidade de esporte, juntos eles falam disso, e se amam através disso. Quanto mais coisas em comum, mais amigos. Um parêntese: Isso é uma coisa interessante ao construir uma relação amorosa, ser amigo do seu parceiro. É claro que tem o risco da friendzone, mas vou deixar esse assunto para outro texto.


Voltando à amizade, eu tratava da relação de reciprocidade, e nisso está outro fator importante: há, na amizade, uma alegria maior no dar do que no receber. Quem faz algo por um amigo de verdade, sente-se melhor ao servi-lo, e não espera que haja troco, mas como ambos pensam assim, um sempre está à disposição do outro e isso já o realiza. Como diriam alguns internautas: “é muito amor envolvido!”.


Amigos são amigos na alegria e na tristeza, somente um amigo de verdade pode estar do seu lado nos piores momentos para te estender uma mão de amparo ou dar o ombro para que você chore, e se ele é dos bons, chora contigo, pois a sua dor é dor dele também. Já no momento de alegria, é com ele é que você irá compartilhar, e ele não será invejosos, mas vai se alegrar como se fosse uma realização dele mesmo.


Há uma diferença muito grande em gostar (to like) e amar (to love). Gostar está relacionado às coisas. Eu gosto de pudim, de café, de bacon, de cerveja, de música clássica e de histórias em quadrinhos. Amar, é só para pessoas: eu amo Deus, minha família, meus amigos e, ao menos deveria, todas as pessoas salvas por Cristo. A forma como usamos essas duas palavras como sinônimos ou equivalentes só mostra a perda de valores e a reificação das pessoas que vivemos nessa era materialista.


E essa perda de valores é o que traz problema para as relações de amizade. Em primeiro lugar, o utilitarismo. Não se ama alguém pelo bem que ela pode me fazer ou pela utilidade que ela me tem, isso é gostar, da mesma forma que eu gosto da utilidade que meu computador tem para mim. Amar está no cerne da pessoa, aquele “eu” que está na outra pessoa de que tratei parágrafos acima.


Existem algumas questões que determinam se se trata de uma verdadeira amizade ou se é apenas algo dado ao fracasso. A mais nociva delas é o ciúme. Cada relação de amizade é única, pois trata-se da revelação de um aspecto seu no outro, de uma forma que cada amizade se faz única por um aspecto, logo, a amizade não é uma questão de competição, antes disso, amigos de verdade gostam do amigo do amigo, pois este apresenta um novo aspecto, o que enriquece a relação. Se a amizade alheia do amigo soa como uma ameaça, talvez você não esteja amando com sinceridade seu amigo, e quer aprisiona-lo ao seu eu.


Entretanto, não é só do veneno do ciúme que é possível matar a amizade, existe um veneno tão letal quanto: a queixa. Amigos de verdade podem até brigar, mas estão dispostos a entrar em qualquer briga para defender a honra do amigo. Eu tenho um amigo com que brigo o tempo todo, mas aí daquele que critica-lo perto de mim. Amigos de verdade não se queixam a terceiros, lavam a roupa suja entre si ali na hora, e em segundos são aliados fidelíssimos novamente.


Como já foi explicado, a amizade está muito ligada aos valores comuns dos sujeitos, de uma forma que uma mudança abrupta na forma de ser pode culminar no fim de uma amizade. Isso acontece muito entre amigos de infância que, ao longo da vida, vão se distanciando (intelectualmente, culturalmente, socialmente, financeiramente, espiritualmente e etc.) e por fim são dois estranhos, pois não podem ver mais aquele “eu” dentro do outro.


Entretanto, amizade se alimenta com presença. Amigos gostam de estar com o outro. Às vezes não é necessário conversar, se bem que há amigos que juntos não fecham a matraca um minuto, mas basta estarem lado a lado, desfrutando da presença do outro. O que em contrapartida quer dizer que a ausência, vai deixando a amizade definhar, até a morte. Em “termos parabólicos”, a amizade é uma como uma planta, deve ser regada pela presença, e se você não regar a “plantinha da amizade”, ele perece.


Enfim, creio que a amizade rende muitas questões das quais poderiam ser feito um livro, tratei das mais básicas apenas de uma forma pincelada, pois, afinal, não existe receita ou fórmula para fazer e manter uma amizade. Cada relação tem seu próprio universo e regras. Mas creio ter dado um norte para que se repensem do que se trata essa dádiva da vida humana, e enfim, a valorizem. Realmente espero que cada pessoa que leia esse texto confesse ter ao menos um amigo de verdade, e passe a estima-lo como real tesouro que é. Por fim, não deixe de enviar essas palavras para ele, pois amizade pressupõem reciprocidade, dentro das capacidades de cada um.

Comentarios


Ragnarok.jpg

Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.

bottom of page