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A descoberta da Justiça

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 13 de ago. de 2024
  • 6 min de leitura
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Há alguns meses, eu estava contando uma história que já nem me lembro qual era para uma determinada classe, quando, no fim, cheguei na parte em que o vilão responderia por seus crimes, e então ouvi, para meu espanto, que a punição que narrei não foi a que meus ouvintes desejavam. Eles, tomados de indignação, desejavam castigos terríveis para o culpado. Isso me fez refletir bastante sobre o que é a justiça e como a vemos.


A história da humanidade está repleta de grandes invenções que mudaram a humanidade. O ser humano é um bicho inventor por natureza, cria, adapta e reformula diversas invenções para que sirvam aos seus propósitos. Quando não tem nada para inventar, redescobre uma descoberta já feita e reinventa a roda, apenas para manter-se criador. Talvez seja esse o traço que nos assemelha ao Deus criador que atribuiu algo de si em cada homem e cada mulher.


Quando pensamos em invenções, não é difícil imaginar o inventor como alguém excêntrico, ele até o é, pois não se cria seguindo a ordem posta sem pensar fora da caixa, fora do centro, mas a forma jocosa como os inventores excêntricos são retratados não condiz com a grandeza deles. Não se inventa um avião do dia para a noite, mas se faz inúmeros projetos e testes, todos eles falhos até que finalmente dá certo. O mesmo vale para as descobertas, não se descobre a genética apenas colhendo ervilhas, mas depois de um árduo estudo feito com empenho e dedicação, em um serviço que deveria ser menosprezado e visto como um castigo.


Inventar, reinventar e descobrir pode ser algo bastante ruim: o homem reformulou diversas vezes a guerra, para que ela mate o maior número possível de pessoas; o homem ainda reinventou a escravidão, repetindo-a diversas vezes como uma criança impulsiva que não aprende com seus erros. O homem inventou a pornografia e a ganância, a segregação e a uva-passa. Descobriu a divisão do átomo e criou a morte. E criou ainda uma forma de aniquilar a vida humana ainda no ventre de sua mãe.


Talvez uma das coisas mais benéficas que o homem possa ter inventado seja a lei. Obviamente, como diz Aristóteles, se os homens fossem amigos entre si, não haveria necessidade de leis e sentenças, mas como os homens não são amigos, o homem inventou a lei.


A lei tem uma história antiga, pode ter começado nos primórdios de nossa espécie, quando inventaram o fogo ou a roda, mas a lei mais antiga da qual nós temos notícia é o Código Hamurabi. Esse código tinha leis estranhas e não era nenhum pouco tolerante à cerveja ruim, ele também dava sentenças que nos soam muito injustas, como matar um filho de um construtor ou matar o acusador de um homem que boiou. Apesar das bizarrices, o Código Hamurabi foi uma boa invenção, pois trouxe – na medida do possível – o princípio da igualdade: olho por olho e dente por dente.


E por que a Lei de Talião é tão importante? Por que ela traz um princípio básico para que haja justiça, e esse princípio é a resolução por meio de uma pena equivalente.


A Justiça é uma virtude cardeal que está no homem bom e que os homens maus precisam aprender para deixarem de o ser. A Justiça não é um departamento ou uma entidade governamental da qual só engomadinhos de toga com linguajar prolixo participam em condição divina. Não, a Justiça está no interior de cada ser humano, esperando apenas que esse a descubra, mas para que isso aconteça, ele terá que aventurar-se em uma viagem expedicionária para dentro de si próprio, abandonando a vida de meras respostas a eventos externos e questionando-se sobre perguntas que nunca se fez antes.


É exatamente por a Justiça ser uma virtude que Hamurabi, Ur-Namu, Valmiki, Robert Fitzwalter ou a câmara dos deputados em Brasília podem criar leis que pautam a justiça. As leis não foram criadas do nada, mas foram criadas pelo dom criador que Deus deu aos homens, o que coloca a dignidade humana e o próprio Deus acima de qualquer lei. Dizer que é errado matar, pois matar é um crime que fere a declaração dos direitos humanos ou a constituição federal é equivalente a dizer que não fizeram mal algum os portugueses ao matar indígenas ou que o holocausto judaico foi mera administração estatal, afinal, nenhum dos dois casos estava em dissonância com as leis vigentes.


Antes que a lei surgisse, já havia uma lei dentro dos corações de todos os homens. Antes que os servos de Hamurabi esculpissem as rochas ou o rei Ricardo partisse para as cruzadas ou antes que a assembleia constituinte se reunisse, já havia uma lei escrita no coração de todos os homens e que alguns puderam descobri-la e trazê-la para fora na letra da lei.


Uma vez que a Justiça se exprime na lei, é preciso distinguir claramente até onde essa virtude deixa de ser o que é e se torna um hábito terrível. É bom que o homem se sinta injustiçado quando uma injustiça acontece, é bom que o homem queira reparação quando lesado e é perfeitamente ético que um puna o outro por suas faltas. Porém, há uma linha muito tênue entre a justiça e a vingança, e essa é a diferença do que a fábula que narrei com o que os alunos desejavam que acontecesse ao antagonista.


A justiça é totalmente diferente da vingança. Enquanto uma busca reparar um equilíbrio, a outra é uma brutalidade sem controle. A justiça está para a vingança tal como o julgamento de Eichmann está para o bombardeio de Hiroshima. Apesar de se narrarem como os heróis da era contemporânea, o que os Estados Unidos fizeram foi a mais descabida vingança e uma demonstração atômica de sua arrogância.


Não, a justiça é sem dúvidas diferente da vingança, e existem pontos claros que as separam. Em primeiro lugar, a regra da equivalência. A justiça busca dar a cada um o que lhe é devido, e dá ao que praticou o crime uma pena de acordo com a sua má ação. Como diz o ditado, se um homem mata um assassino, ainda haverá um assassino. E se, num impulso punitivo um homem matar mil assassinos, não teremos mais assassino nenhum, mas uma besta terrível que nem mesmo o profeta Daniel conseguiria descrever. O mal, nesse sentido, não se redime.


É claro, não deve ser criada uma subserviência da lei em relação aos criminosos, transformando assim os maus em um lumpemproletariado oprimido pela própria lei e justiça. Não desejar que se haja um descabimento na lei de Talião não está, de maneira alguma, protegendo os criminosos de que paguem pelo que fizeram.


É que esse descabimento é a característica da vingança. Toda vingança é extremista, pois sempre desemboca em tornar muito pior o injustiçado do que fora o mal sentenciado, sai o lobo, surge o leviatã. A vingança tem como objetivo a violência e, na maioria dos casos, a morte, ela não tem outro objetivo e modus operandi senão esse. Foia a vingança que levou à tragédia de Hamlet. A vingança é um clamor pelo derramamento de sangue.


Acho curioso o fato de um grupo de super-heróis se chame “Vingadores”, porque a vingança não é uma característica de heróis, mas sua própria ruína. Entretanto, apesar de seu nome, os Vingadores não são adeptos da vingança, mas da justiça. Os Vingadores não mataram Loki quando puderam e só usaram a Manopla do Infinito contra o Thanos porque ele o fez contra o universo inteiro. O Homem de Ferro não derrotou Thanos por odiá-lo, mas para que o que é correto seja feito.


E o pulo do gato é exatamente esse, a vingança é um desejo proveniente de uma deturpação da vontade que é sufocada por uma avalanche de sentimentos. Já a justiça parte da reta razão. Enquanto o vingador odeia o mal, o justo ama o bem e sente a falta dele. Assim sendo, a vingança busca saciar-se, descarregar todo o turbilhão de ódio que se retroalimenta no coração do sujeito, enquanto a justiça pede um esforço de pensamento e uma clara ponderação para ser executada. Stark ponderou sobre estalar os dedos, ele sabia claramente as consequências, inclusive a sua morte, ele agiu em vista do bem e a justiça prevaleceu.


Apesar desse exemplo, os filmes hollywoodianos estão repletos de uma romantização da vingança, de uma vingança fria e planejada, mas não menos emotiva e de ódio descontrolado. Nós gostamos da vingança e se tomamos as dores da personagem, desejamos a vingança por ela também. Mas não é porque é fácil apreciar a vingança que ela deve ser praticada.


A justiça é uma virtude e, como tal, exige um certo esforço e uma busca sincera e não menos árdua para conquistá-la. Não é fácil ser justo, assim como não é fácil adquirir qualquer outra virtude, pois isso exige um autoconhecimento e um autocontrole que só aqueles que se aventuraram pelo seu próprio interior teriam descoberto. A justiça é conquistada devagar, com tentativa e erro, um dia de cada vez, até que ela floresça na alma. A justiça é uma descoberta que não é feita da noite para o dia, mas é obra de uma vida. Porém, é da justiça e é só dela que vem a paz.

1 comentário


LUCAS GABRIEL
LUCAS GABRIEL
14 de ago. de 2024

A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena

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