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Todo mundo tem defeito, até mesmo a bailarina

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 17 de jul. de 2024
  • 6 min de leitura

Publicado originalmente em 2016.


“Procurando bem todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina. E tem piriri, tem lombriga, tem ameba. Só a bailarina que não tem…”. A música Ciranda da Bailarina é um clássico da MPB e já foi gravada por vários cantores ao longo dos anos e apesar de ouvir bastante essa música, nunca vi ninguém mostrando que entendeu direito o que ela quer dizer, exceto a minha professora de literatura que deu uma luz sobre essa letra aparentemente infantil.


“O eu-lírico está na plateia, no camarote, vendo a bailarina se apresentando no palco” — explicava ela — “e está vendo tudo de longe, com aqueles binóculos de haste. Dessa distância, a bailarina é linda e parece não ter defeito algum”. Essa explicação dela foi como uma luz em meio a penumbra teatral em que eu me encontrava. Ora, antes eu só pensava que a bailarina era uma chata de galocha e que eu não podia fazer nada a não ser aplaudi-la, afinal, os deuses do teatro a haviam cumulado de todas as perfeições, como as fadas da Bela Adormecida, só que sem a parte da maldição do sono, até porque procurando bem todo mundo tem uma sina, só a bailarina que não tem.


Quando escuto essa música e fico pensando no que a professora disse, percebo que essa interpretação é bem correta, afinal, a letra se dá entre a repetição da frase “Procurando bem, todo mundo tem”. Todo mundo tem pecado, mesmo que a Missa tenha acabado de terminar, e dessa vez não estou falando de você mesmo, caro leitor, estou falando da bailarina.


Entenda, eu geralmente recomendo que não se concentre nos defeitos alheios, fazendo fofocas e difamações, mas que se olhe para si mesmo. Mas eu sei que é normal que as pessoas tenham em mente seus próprios defeitos e limitações. Uma pessoa que desconhece seus próprios defeitos, vícios e fragilidades e tão patética que não precisa nem de esculhambação, mas de pena. Não, eu não estou dizendo que você, leitor, é a bailarina. Eu me refiro aquela semideusa ou semideus que você acredita ser perfeito e cumulado de todos os bens como se a Terra fosse a plateia e o resto da humanidade meros fãs.


Tende entender o paradoxo que temos aqui: existem pessoas que cumulamos de todos os defeitos, consideramos abaixo da dignidade de pessoa e não conseguimos levantar um pontinho positivo sequer do sujeito (a esse somos convidados a usar de misericórdia e procurar para ver as coisas boas, pois ninguém é só defeito), mas ao mesmo tempo existem pessoas que admiramos como seres etéreos, impecáveis e que merecem toda nossa devoção fanática e nos recusamos a ver qualquer defeito delas. Em alguns casos fica só na veneração — até aí tudo bem –, mas essa veneração pode tornar-se decepção, caso se descubra alguma “unha encardida”, “dente comida” ou “casca de ferida” nessa bailarina tão graciosa. Nos piores casos, nem surge a veneração, mas a inveja — a vontade de brilhar como a bailarina que leva a ignorar as próprias capacidades e ignorar, de igual forma, os defeitos da bailarina, que com certeza os tem, afinal “não livra ninguém, todo mundo tem remela quando acorda às seis da matina”.


Vamos tratar o primeiro caso, a perda de fé nas divas e nos gurus. Já dizia aquele rapaz que sofria um pouco de T.O.C.: “Gosto de quando tudo está no seu devido lugar”. Não como a obsessão dele, mas aqui há uma verdade: criaturas irracionais foram feitas para ficar abaixo do homem, ao seu serviço e sob seu zelo; pessoas foram feitas para estar do lado, como irmãos, companheiros desta jornada existencial; Deus tem que estar acima como superior e senhor de nossas vidas e receptor de toda nossa adoração. Tudo no seu devido lugar.


O problema é que desorganizamos as prioridades de nosso coração como um moleque que não sabe arrumar o próprio quarto. Assim, colocamos as criaturas irracionais como seres iguais ou superiores, tratando cães como filhos, dando a animaizinhos mais direitos que fetos humanos ou colocando o dinheiro como mais valioso que vidas; assim tratamos Deus como um coleguinha, uma avó boazinha que deve me dar tudo ou como quem posso pôr de lado com facilidade; e por fim podemos pôr o homem como ser desprezível, um bicho sem valor, ou ainda elevá-lo a condição de ídolo, palavra que devia imediatamente ser conectada a um pecado gravíssimo: idolatria.


O caso da bailarina é exatamente o último, idolatria. Você atribuiu à bailarina características divinas, tornou-a uma deusa impecável, um ser que merece adoração e veneração, mas isso não condiz com a realidade, pois todo mundo tem defeito, mesmo a bailarina. É que você está longe demais, na plateia ou no camarote, vendo com binóculos de haste. O pior é que isso é tão descarado que usamos palavras como “ídolo”, “musa”, “diva”, “guru” ou até mesmo “deus”.


Quantas pessoas ficam como devotos por horas dormindo em filas para ver um show, gastam o dinheiro que não tem para ver uma celebridade ou chegam ao extremo de se matar caso o ídolo a decepcione. É claro, pode ser que não seja apenas alguém do mundo dos famosos, quando se trata de idolatria, o ser humano não perde tempo em fazer seu bezerro de ouro dos próprios brincos, o ídolo pode ser um youtuber, um professor, um escritor, um padre, um irmão da paróquia ou até o Seu Joaquim da padaria. Com a distância certa, todos podem ser a bailarina.


Quantas pessoas recebem toda a veneração a ponto de que se afirme ser detentor da razão, ou que suas dicas são infalíveis ou até que seja um santo ainda em vida (mesmo que olhando bem, santo só se é possível reconhecê-lo depois de morto). Quanta esperança colocamos nos homens. Quantas pessoas assumem o papel de bailarina nos palcos de nossos corações!


Mas ninguém é perfeito, é só procurar bem! A bailarina não é tão bela assim. Descobrir os erros dessa bailarina pode gerar uma decepção tremenda: descobrir aquela falta moral daquele padre (que “pode até ficar vermelho se o vento levanta a batina”), perceber aquela contradição daquele professor ou escritor, notar aquele jeitinho irritante daquela menina bonita ou ainda detectar aquela falha do seu “santo de devoção”. Tudo isso pode gerar o desânimo de tentar ser melhor, a raiva completa daquela “diva” ou daquele “guru” e até mesmo o absurdo de querer cair igual, dizendo, “Se ela/ele que era santo errou, quem dirá eu que sou normal”.


Isso porque estou considerando apenas os casos em que o sujeito é apreciado por sua suposta graciosidade. Existem casos em que o sujeito é invejado ao extremo, pois o expectador é tão mal resolvido que colocou alguém no palco e sentou-se na plateia para vaiar e remoer a vontade fracassada de estar no próprio palco ou no palco dos outros.


Quantas pessoas sofrem de inveja desses ou daqueles que parecem ser melhores em tudo, verdadeiros seres perfeitos e impecáveis e sentem raiva por quererem ser perfeitos, mas não se dão de que “sala sem mobília, goteira na vasilha, problema na família, quem não tem?”. Não existe esse lance de bailarina perfeita! Todo mundo tem defeito e isso não deveria nem espantar e nem alegrar.


O homem não é um deus, mesmo o mais santo tem defeitos e precisa confessar-se com frequência, mesmo o mais sábio pode equivocar-se ou não ter estudado um assunto corretamente, mesmo o mais moralista pode precisar de misericórdia. Mesmo a bailarina mais bela precisa de uma boa maquiagem.


Aqui é preciso dar aquela arrumada no quarto, daquelas boas que as mães obrigam sob castigo. É preciso por Deus como Senhor e entender que é Ele quem dita as regras, não minha opinião; que os objetos são para meu uso e para o uso dos demais, não sendo correto conseguir algo lesando ninguém; que animais devem ser cuidados, mas sempre no nível aceitável de estima, sem paparicar demais ou querer dar “direitos” como se fosse uma pessoa; que pessoas são sempre valiosas, sejam as mais chatas, pecadoras ou miseráveis; e que todo mundo tem defeito “procurando bem” e eu não devo colocar minhas esperanças e afetos em um homem como se esse fosse um ser divino, pois a bailarina pode ser bela e perfeita, mas essa impressão desaparecerá rapidamente ao cessar o espetáculo, acenderem-se as luzes e aproximar-se o público para os cumprimentos. Mesmo assim, palmas para ela, afinal, foi um belo espetáculo.

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