E se Deus não existisse?
- Carlos Neiva
- 17 de jul. de 2024
- 5 min de leitura

Publicado originalmente em 2017.
As discussões hipotéticas são necessariamente uma perda de tempo. Ora, trabalhar com uma construção lógica a partir de um pressuposto não existente e como construir um castelo de areia no ar, considerando que o ar poderia ser sólido. Parece uma comparação banal, mas se o ar tem como característica real sua não-solidez, dar-se ao trabalho de construir algo que dependa inteiramente do contrário é ilógico. Mesmo assim, o ser humano já se utilizava dessa forma de perder tempo muito antes da invenção de Minecraft. Foram dezenas de discussões teológicas sobre a questão “E se o homem não tivesse pecado, Deus se encarnaria mesmo assim?”.
Mas mesmo que seja uma completa perda de tempo, vamos nos dispor desse exercício só por diversão. Vamos pensar que pode sair algo frutuoso daí, como o pensamento dos roteiristas “E se o Superman tivesse caído na União Soviética e não nos EUA?” gerou a excelente graphic novel Superman: A Foice e o Martelo.
Então faz de conta que um homem que era um bom católico morreu e descobriu que não existe Deus nem pós vida, que Jesus Cristo era só um hippie e que a Igreja Católica uma instituição medieval de domínio italiano. E aí, valeu a pena viver toda essa vida de busca pela santidade?
Valeu a pena ter acreditado em um Deus criador? E em um Paraíso? Sim, valeu a pena. Quando o homem toma consciência de si, é automaticamente atormentado por três perguntas: De onde vim? Quem sou eu? Para onde vou? O cristianismo foi com certeza a melhor forma de enfrentar essas três questões e viver em paz com elas, sem fugas. Mesmo que tenha sido uma fábula, foi instrumento para evitar a loucura, a esquizofrenia e a falta de propósito.
Nosso bom homem pode repetir consigo que é um ser racional direcionado à eternidade e que foi criado por Deus e para Deus. Ou seja, pode repetir que viveu com seu espírito aberto à grandeza sem se deixar esmagar pela insignificância a qual o universo nos impõe; de que viveu com um ideal de bondade, sendo mais do que uma sombra que passa neste mundo, mas alguém que o faz melhor; de que foi criado por uma força que tinha panos para ele, e não por mero acaso. São mentiras reconfortantes, não?
E a verdade? Bom, se Deus não existe então temos duas opções: ou uma verdade esmagadora, ou uma mentira maravilhosa. Mentiras são mentiras, mas se não existe um Deus, mentiras são permitidas. Tudo para não acabar como um filósofo pessimista no manicômio. É melhor estar preso em uma prisão de ouro do que livre em um deserto.
E Jesus Cristo? Com certeza é uma figura humana fascinante. Pouco importa se era só uma carinha que pregava o amor ou se foi inventado pela Igreja. Pensar nele traz inspiração e um propósito grandiosos, como Alexandre Magno ou Ulisses.
E a tal da cruz? Se somos obras do acaso, o sofrimento é apenas um rolar dos dados que não deu certo dessa vez. A visão de sofrimento do cristianismo ensina sempre a tirar algo de bom das coisas, mesmo as ruins. Então valeu a pena ter sido tão forte. Nosso homem pode perceber que mesmo que as mortificações, penitências e jejuns, embora não tenham agradado a nenhuma divindade, fizeram dele um homem firme, que suportou com caráter e dignidade os reveses da vida.
Se nosso bom homem esforçou-se para crescer em virtude, não vai lamentar por ter se esforçado por ser: mais homem. As virtudes são próprias do desenvolvimento do homem. Nosso bom homem percebe que valeu a pena ter sido forte, honesto, sábio, corajoso, perseverante, ordenado, temperante, amigo, misericordioso, paciente, casto, prudente, justo, pacífico, humilde, simples, caridoso, desapegado, prestativo, leal e bem-humorado. Essas qualidades foram conquistadas com esforço, mas fizeram dele realizado consigo mesmo agradável aos demais. Sempre teve amigos e pessoas que o estimavam. Ajudou a muitos. Fez a diferença.
E os prazeres que a religião não permitiu que desfrutasse? Casou virgem, nunca deitou-se com outra mulher sem ser a sua única esposa, não fazia sexo sempre que sentia vontade, não comia em demasia, ficava sem comer carne às sextas, não bebia nem fumava. Agora que descobriu que Deus não existe, deve ter se arrependido de não ter aproveitado os prazeres da vida. Não! Nosso bom homem está em paz. Sem deixar-se dominar pelos apetites, ele sempre foi senhor de si. O ato sexual representava o amor pela única mulher que amou, alguém que escolheu como companheira para respeitar e construírem uma vida juntos. O sexo era amor e doação completa. Juntos tiveram muitos filhos, o amor só se multiplicava. Não viveu como gado para o abate, comia para se satisfazer e sabia apreciar os pratos feitos pela esposa. Ficar sem comer algo de que gostava fazia que apreciasse melhor no outro dia. Era feliz, nunca precisou refugiar-se em bebidas ou drogas.
E todos aqueles momentos de oração em que, agora pode perceber, conversou com o vazio? Foram momentos incríveis de reflexão pessoal, de elaboração propósitos concretos para ser melhor, de meditação e alívio anti-estresse. Conversar com o seu anjo da guarda parece agora semelhante a um menino que tem amigos imaginários. Mas qual é o problema? De gênio e louco todos nós temos um pouco. Foi bom imaginar-se sendo ouvido por forças superiores, ao menos não se sentia sozinho.
E a Igreja? Com certeza deve ter se irritado em servir uma instituição composta por gente tão corrupta e suja. Também não, nosso bom homem sempre viu na Igreja um apoio para buscar desenvolver-se. O padre foi um conselheiro, as irmãs colaboraram na educação de seus filhos, a Missa dominical foi um evento semanal onde podia ver amigos, ter um contato com a arte e refletir depois de uma semana corrida de trabalho. Além do mais, ele sempre teve orgulho de fazer parte da maior e mais velha instituição filantrópica do planeta, de estudar com os desenvolvedores do método científico e a coluna do pensamento ocidental, de estar ligado a um órgão que defende a ética e a vida humana. Nosso bom homem podia relembrar alguns dos nomes dos grandes homens que fizeram parte dessa mesma “família”: Carlos magno, Santo Agostinho, Miguel de Cervantes, Dante Alighieri, Michelangelo, Gilbert K. Chesterton, João Paulo II e Madre Teresa de Calcutá. Ele com certeza deixaria então escapar um sorriso. Fazer parte da Igreja Católica é muito mais chique do que pertencer a qualquer outro grupo high society.
Então, poucos minutos antes que todas as suas funções cerebrais findassem, este homem, sozinho na própria consciência, pergunta-se: Valeu a pena? E então veria que valeu a pena sim ter buscado a coerência com a sua fé, mesmo que agora descubra ser tudo um mero construto social.
Mas, felizmente, existe um Deus, um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. Um Deus que o criou por livre amor; que se encarnou e o redimiu, ligando-o a Ele por laços filiais; um Deus que sempre concedeu graças para que ele se desenvolvesse e fosse feliz; um Deus que esteve do seu lado nas alegrias e dificuldades. Existe um Virgem Santíssima, que sempre intercedeu por ele e deu-lhe muitas alegrias. Felizmente, a Igreja não é mera instituição humana (se o fosse, teria acabado há tempos), mas verdadeiro corpo místico de Cristo, do qual ele fazia parte e pode receber inúmeras graças. Nosso bom homem está agora diante de Deus, teve uma boa vida e receberá ainda mais. Cristo o recebe de braços abertos e diz “Vinde, bendito de meu Pai, para o descanso eterno”. Então ele escuta pela última vez a pergunta: Valeu a pena? Ah, sim! Cada segundo.
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