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The Good Place: um bom lugar para repensar a ética

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 5 de fev. de 2020
  • 11 min de leitura


Há um tempo atrás, comecei a assistir ao seriado criada pelo Michael Schur, o mesmo criador de The Office e Brooklyn Nine-Nine, de forma bem despretensiosa, como quem queria assistir a algo engraçado para distrair a cabeça depois de um longo dia de trabalho. Entretanto, deparei-me com uma série cheia não só de boas piadas, mas com uma reflexão ética digna de nota, sobre a qual discorro agora.


A série conta com o seguinte argumento: Eleonor Shellstrop (interpretada por Kristen Bell) morre e vai para o “bom lugar”, pois em vida foi uma pessoa muito bondosa. Ao menos é o que ela escuta do arquiteto daquele bairro do paraíso, Michael (interpretado por Ted Danson). Acontece que há um grande engano. A senhorita Shellstrop não fez nada daquilo que disseram ter feito em vida, na verdade, ela era uma babaca, preguiçosa e mesquinha. Restam duas alternativas: falar toda a verdade e ser enviada ao “lugar ruim” ou manter a farsa e curtir o paraíso.


Antes de qualquer coisa, é preciso ter algo muito firme em mente: a série não é sobre o Céu e o Inferno, é sobre Ética! Os assuntos da além vida não são o escopo da série. Os produtores levam toda temática escatológica na brincadeira já desde a primeira cena do primeiro episódio, quando Michael conta que ninguém conseguiu acertar como é a vida além túmulo. As religiões só conseguiram deduzir uns 10% da verdade, mas um rapaz chamado Doug Forcett um dia ficou chapado de maconha e acertou 90% da realidade pós-morte, o que mereceu seu rosto em um quadro na parede. Ou seja, buscar ensinamentos sobre morte, juízo, inferno e paraíso é perda de tempo total, a série não está levando nada disso a sério.


Mas por que falar sobre ética precisa envolver a vida após a morte? A própria série vai explicar várias vezes: se fôssemos imortais, não iríamos nos preocupar com a Ética, isto é, com as consequências de nossas ações. O fundamento da Ética é a morte. Gente imortal, como Michael, Shawn e a Juíza Gen, não precisa se importar com as consequências de suas ações.


O “bom lugar” consiste portanto em um espaço feito para recompensar aqueles que possuem a maior pontuação de boas ações. Sim, há uma contagem de pontos: ações boas dão pontos, ações ruins tiram pontos. Quem conseguir um grande número de pontos vai para o “bom lugar”, ou seja, o “lugar ruim” é para gente má e medíocre.


Sendo assim, Eleonor vai buscar ser uma pessoa Ética, para manter-se no “bom lugar”. Ela vai contar com as aulas de Ética de Chidi Anagonye, para suportar a mesquinha Tahani Al-Jamil que anda acompanhada do silencioso monge budista Jianyu Li. Ainda bem que ela tem uma Janet para atender seus pedidos!


Eleonor Shellstrop é uma americana do Arizona que sempre se virou, com pais estúpidos, ela aprendeu a se virar, mas tornou-se uma pessoa cruel, mesquinha e egoísta; Chidi Anagonye é um estudante de Filosofia “academicista”, que sempre teve uma tremenda dificuldade de se relacionar com as pessoas e também de tomar decisões, pois sempre tinha em mente o peso ético das coisas; Jason Mendonza é um trombadinha da Flórida de inteligência escassa; Tahani Al-Jamil é uma patricinha que viveu a vida toda em festas com famosos e milionários; Já a Janet é um ser artificial que pode fazer tudo que você quiser, além de te dar todas as respostas do universo.

Mas já que mencionei as personagens, quero indicar algo interessante já de cara. A série quebra nossos padrões estereotipados de forma magistral: o intelectual é o africano negro, o asiático é o malandro, a loira é a sem modos e a de ascendência indiano-paquistanesa é a bem nascida. Tudo é colocado de forma tão natural, sem querer fazer um protesto, uma “lacrada”, que compramos a ideia já desde o primeiro episódio.


Voltando a Ética, na primeiro temporada, o “bom lugar” é um espaço para gente politicamente correta. Vai para o Céu quem fundou alguma ONG, quem é vegetariano e quem atuou politicamente. Isso me irritou um bocado, pois deu para ver que a noção Ética, pós-marxismo é exatamente essa: é um sujeito ético quem é engajado politicamente. Noção muito pobre, diga-se de passagem. O “bom lugar” é um conjunto de mansões de filantropos em ternas festas. Um Céu muito chato.


Mas surge um segundo modelo ético: Chidi é PhD em Ética, com um profundo estudo em Kant. Ele vai ensinar Eleonor a ser ética, mas dá para ver que seu modelo é muito autoritário. A loirona tem que seguir um conjunto de regras imperativas, o que no final é algo muito exigente e limitante. Sofre Eleonor, sofre Chidi, sofre Jason Mendonza (o verdadeiro nome de Jianyu Li, que se revela outro equívoco do arquiteto). Afinal, a Ética de Kant é baseada em sua visão crítica da razão, onde a realidade não é possível de ser conhecida, mas a razão a compreende de uma determinada forma. Assim, sua práxis vai se dar exatamente dessa forma, age-se conforme o que a razão diz ser certo e que todos deveriam fazer. Quem não obedece os imperativos, erra, ou melhor, peca (vale lembrar que Kant foi criado em um piedoso meio protestante).


Em meio a dois modelos éticos extremamente modernos, o marxista e o kantiano, vi-me assistindo uma série cheia de erros filosóficos. E no que se refere à realidade escatológica, havia mais erros. Um céu sem Deus, mas com um arquiteto parecia ser algo gnóstico, como se o simpático senhor de gravata borboleta fosse um demiurgo realizando seu trabalho.


O grande choque vem no último episódio da primeira temporada: Michael na verdade é um demônio e todos estão no “lugar ruim”, sendo torturados com suas esperanças, ou melhor, torturando uns aos outros com suas esperanças. Aí as coisas começaram a ficar mais interessantes: os figurantes do bairro não são filantropos, mas demônios fingindo serem pessoas do bom lugar, o que passa a fazer todo sentido; Chidi sempre foi um autoritário e indeciso com sua ética kantiana, um verdadeiro moralista insuportável, por isso está sendo torturado; Michael não criou nada, apenas projetou e pediu a Jante para criar. O que faz das Janets (sim, são várias) não demiurgos, já que elas não criam por vontade própria, mas uma espécie de emanação divina criadora, elas são como eóns ou inteligências lunares. Afinal, elas podem tudo, sabem tudo, estão em tudo, mas são fabricadas na sala ao lado da contabilidade.


Entretanto, o plano da lula de fogo deu errado e ele não conseguiu torturar os quatro protagonistas, por mais que quisesse. O resultado é satisfatório: a virtude é algo que pode ser apreendido depois de um esforço continuo e passa a ser natural depois disso. Ser bom é como andar de bicicleta, aprende-se com certo esforço e depois se faz sem ver. Aqui que está o ponto: apesar de toda a ética kantiana de Chidi (e Michael disse que Kant está no “lugar ruim” sendo torturado tendo que ir para a escola todo dia), a ética na qual a série está fundamentada parece ser aristotélica, pois é um série do auto-desenvolvimento.


Apagando a memória dos quatro protagonistas (Eleonor, Chidi, Jason e Tahani) e tentando brincar com a esperança deles mais uma vez, o arquiteto demônio Michael se vê diante do fracasso: os protagonistas param de se torturar, aprendem a ser bons e se desenvolvem, descobrindo que aquilo não pode ser o verdadeiro “bom lugar”. Ele tentou uma série de vezes, mas nenhum resultado. No final, ele prefere se juntar aos inimigos que não podem vencer (uma ética da Arte da Guerra para o demônio?), que eles o ajudem a livrar sua incompetente cabeça do seu patrão, o demônio Shawn. Os protagonistas se desenvolveram e se tornaram bons, então topam proteger seu carrasco.


A segunda temporada é basicamente eles aprendendo a se desenvolverem cada vez mais, enquanto precisam fingir que tudo está bem no bairro, ou melhor, tudo está mal e que estão sendo muito torturados. Enquanto isso, Michael entra nas aulas de ética do Chidi junto com os demais. Michael é um demônio e não pode ser bom, mas Eleonor mostra que ele pode ser extinguido se Shawn o pegar, o receio da extinção faz com que ele repense sua vida e, assim, ele aprende a ser bom.


Quem aprendeu a ser bom também, mas a sua maneira, foi a Janet, que a cada reinicialização feita por Michael ao tentar iniciar a tortura dos humanos novamente, foi se desenvolvendo em cada versão até vir a ser a Janet mais atualizada e desenvolvida do universo. Sendo capaz de pensar, escolher e amar por conta própria. Ela até mesmo criou um ser semelhante a si, o Derek.


O fato é que essa turminha que se mete em altas trapalhadas decide fugir daquele lugar e buscar refugio. Eles apelam à Juíza Gen, uma entidade cósmica viciada em seriados e responsável de resolver as complicações entre o “bom lugar” e o “lugar ruim”. A Juíza faz testes para ver se eles são realmente bons, mas nem todos passam. Michael insiste em salvar seus queridos humanos e o resultado é meio João Grilo: leve-os de volta à vida e eles terão uma segunda chance.


A terceira temporada é feita basicamente com um viés positivista com uma pequena reflexão teológica. Explico: os protagonistas viram um experimento, um experimento que não pode ser manipulado. Eles devem provar que conseguem ser bons, mas será que conseguem mesmo? Michael vê que eles falham e decidi intervir. Uma intervenção segue outra e no fim já não é possível saber se eles são bons por si ou se foram manipulados por uma força não humana. Fica o questionamento: se um espírito não humano é que coloca as disposições para que você seja bom, você é bom de fato? A série acaba por criticar a predestinação calvinista, tão comum no meio norte americano (embora eu acredite que o faça sem ser proposital).


Diante do fracasso, os protagonistas decidem ir reclamar com autoridades maiores, o Contador. Essa entidade é o chefe de um escritório que faz a contagem das ações de forma neutra e formal. Finalmente a verdade vem a tona: ninguém consegue ir para o bom lugar há séculos, pois todas as decisões são elencadas por uma trama complexa de co-dependência da sociedade que pode modificar as ações em si. Ou seja, no sistema de contagem de pontos que a série critica e os protagonistas tentam derrubar, você não pode ter a assinatura de um serviço de streaming cujo CEO financie o aborto ou estará tomando parte nisso, logo, assinar um serviço de streaming passa a ser uma ação má e não neutra. Com isso, ninguém pode ir para o céu, pois podem perder muitos pontos comprando um saco de batatas, como bem notou a Juíza.


Se o sistema não funciona é preciso entender o problema. Então nossos protagonistas convencem a Juíza de fazer um novo teste: eles vão projetar um bairro como o anterior e levarão quatro novas pessoas que deverão se desenvolver e se tornar boas como eles. Shawn tenta estragar o teste de todas as formas possíveis, mas três das quatro pessoas do teste conseguem se tornar melhores: John Wheaton, Simone Garnett e Chidi (reinicializado para substituir Linda, que na verdade era um demônio disfarçado). Já Brent Norwalk, o quarto integrante, só percebe que é um babaca no último instante, quando acabou o prazo. Enfim, o experimento serve para mostrar que é possível sim ser bom e que as manipulações dos protagonistas não tiram o livre arbítrio, mas dão as disposições, já que Brent não mudou sobre manipulação, mas apenas depois, com sinceridade.


Passada essa loucura, o foco da série volta para o escritório da Juíza Gen, que decide que há muitos problemas paras e resolver e que, dado a falha da contagem de pontos, é melhor reinicializar a Terra toda. A solução é propor um novo sistema, um sistema que ajude as pessoas a ir para o “bom lugar”. Assim, quando alguém morre, vai ser enviada ao bairro de teste, se falhar, entrará no teste novamente, e serão uma sucessão de reencarnações até que a pessoa esteja apta a ir ao “bom lugar” com a melhor versão de si. A solução se torna um tanto patética, todo mundo pode entrar no céu, contando que tente quantas vezes for necessário.


O absurdo ainda fica pior, os protagonistas vão para o Céu e descobrem que a constante vida de prazer, sem auto-desenvolvimento, mas com tudo que você desejar torna todas as pessoas em imbecis. Michael se torna o arquiteto do “bom lugar” e busca solucionar essa questão. Ele cria um portal para o nada. Quem passar ali se extingue no universo, assim, quem se cansar da curtição do bom lugar, pode apenas atravessar. O resultado é curioso, ninguém deseja passar, mas curtir um pouquinho. É velho ponto da fundamentação ética na morte.


Até o penúltimo episódio, a série só tem duas opções de análise: ou ela é uma série sobre Ética que não deve ser levada a sério quando o assunto é Escatologia, ou a série esqueceu-se de sua essência e caiu no erro de levar-se a sério. Optemos pelo primeiro ponto: a série não está falando sobre reencarnação ou sobre morrer depois de morto e extinguir-se no nada absoluto, mas está separando em etapas uma única vida humana que deve tentar e tentar quantas vezes for preciso para se desenvolver, até que chegue o fim da jornada. Se o caso for a segunda, então ela cometeu uma gafe: quis ser politicamente correta e democratizar o paraíso, ofertando um céu de qualidade para todos, o que no fundo é uma tremenda ignorância salpicada de bondade juvenil.


Considerando que a série é, na verdade, uma grande aula divertida e despretensiosa de Ética, então precisamos entender alguns pontos. A série faz uma crítica aos modelos éticos que existem atualmente, o kantiano, o protestante e o marxista, mas busca algum modelo para colocar no lugar. Há um flerte com a ética das virtudes, o modelo aristotélico, mas nada visto de forma profunda. Aristóteles é um cara legal que só está no “lugar ruim” por ser a favor da escravidão, assim como Platão (Sócrates era irritante e mastigava de boca aberta). De fato, a Ética aristotélica leva apenas para ser uma pessoa feliz que vive bem em sociedade, é preciso um salto transcendental e quem o faz é Tomás de Aquino. O santo filósofo, porém, só é citado duas vezes: Eleonor diz que gostou dele e o apelidou de “Thommy” e Chidi comemora sua entrada no “bom lugar” que funciona no novo modelo, mas mesmo a ética aristotélico-tomista não é muito trabalhada. Michael Schur sabe que ela existe, mas a desconhece, e não entra em detalhes. Afinal o preconceito cristão se mostra claro quando a única “celebridade” no Céu, diante de tantos santos e santas da Igreja Romana, é Hipátia de Alexandria, a matemática morta por cristãos.


Criticando os modelos éticos atuais e sem o devido conhecimento da modelo escolástico para fazer a substituição, a série busca um modelo ético que seja bom diante das maluquices da contemporaneidade. Eles vão então para o Oriente, já que não acharam nada satisfatório no Ocidente, e deparam-se com o sistema budista.


Viver passa a ser um auto-aperfeiçoamento constante que deve ser feito até que se alcance o Nirvana, até que se fique “zen”, com paz na alma. É o que de fato acontece no último episódio, Chidi e Eleonor encontram a paz, depois de ver que tudo que precisava ser feito em suas vidas foi de fato feito. Sendo assim, missão cumprida, a morte pode ser abraçada como um bem, como uma passagem. A morte agora é a morte mesmo, chega de “bons lugares”, então atravesse o portal e se desfaça. Parece um mal, olhando do ponto de vista metafísico aristotélico-tomista, mas do ponto de vista do budismo, não. Afinal, a onda que quebrou na praia não deixou de existir só porque não é mais vista. Eleonor não vai mais ser vista, mas suas partes, já melhoradas, vão estar por aí.


O mesmo acontece com Jason, que finalmente zerou seu jogo de vídeo game. Fato interessante é que, antes de passar pelo portal, ele passa centenas de anos em silêncio, pensando na morte, vindo a se tornar, de fato, o monge budista Jianyu Li, que passa então pelo portal. Já Tahani decide tornar-se arquiteta, pois seu desenvolvimento não acabou. Michael realiza seu sonho de tornar-se humano.


Qual a grande lição de The Good Place? O ensinamento budista de que tudo nessa vida é uma constante mudança (o que justifica as muitas “reencarnações” no novo sistema pós-morte) e que a morte é só mais uma outra transformação, e de que aqueles que se iluminam com essa verdade tornam-se pessoas em paz, realizadas. A série deseja que todos busquem ser a melhor versão de si e que no final encontrem a paz para partir com serenidade. Afinal, isso não é a Ética? A Ética era exatamente um meio de agir bem e ser feliz. A modernidade se esqueceu disso em meio a regrinhas, rigores, modinhas, ideologias, revoluções e sobretudo do egoísmo, mas vivemos nesse mundo para sermos melhores até que venha a hora final: como diriam os monges medievais uns aos outros ao se cumprimentarem: “Memento mori” e “Carpe Diem”.


Depois de quatro temporadas totalizando cinquenta episódios, Michael Schur encerra a divertida série que tem muito a ensinar sobre Ética. Resta aos telespectadores viverem o resto de suas vidas com essa lição, assim como Michael (curioso o fato de ser o mesmo nome do autor, não?), a lição de que o que importa não é a contagem de pontos, mas o efeito que as boas ações geram, homens e mulheres melhores, felizes, completos.

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