Sobre o botão soneca
- Carlos Neiva
- 17 de jul. de 2024
- 5 min de leitura

Publicado originalmente em 2016.
Pedro chegou atrasado na faculdade, essa noite jurou por Deus que acordaria no horário. Morava longe, e tinha que levantar muito cedo, de madrugada, para pegar os dois ônibus que o levavam ao campus. Colocou o despertador programado para um pouco mais cedo que o de costume e reafirmou seu juramento.
Porém, visualizar vídeos engraçados e conversar com colegas no WhatsApp acabou por ir dormir tarde. Deitou-se e fez as contas, dormia um pouco, mas manteve o propósito feito. Mal piscou os olhos já estava na hora. Do céu, era como se Deus dissesse “Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes”. Pedro estava tomado de sono e pensou consigo “talvez se eu dormir só mais um pouquinho”, e colocou o celular no modo soneca.
Mal piscou os olhos e o celular já tocava novamente. Como dez minutos se passaram tão rápido? “Talvez se eu tomar um banho mais rápido”. Ativou o modo soneca novamente. Mais uma piscada e o celular tocou de novo. “E se eu não tomar café, e deixar para tomar lá no campus depois da primeira aula?”. Toque o botão soneca novamente.
Pedro falou as pressas, não pode tomar café e o banho foi rápido. A cama ficou desarrumada e esqueceu um caderno em cima da mesa. Acabou perdendo o ônibus e, por consequência, a primeira aula. O galo então cantou.
Acredito que o mundo moderno tem muitos problemas, mas nenhuma das invenções parece ser tão nociva quanto o botão “snooze”, ou como chamamos no Brasil “soneca”. Tudo bem que existem as drogas, as armas nucleares, os anticoncepcionais e o Big Brother Brasil, mas acredito que o botão soneca deveria ser pensado como uma das piores invenções da humanidade.
O botão soneca é o jeitinho brasileiro adaptado ao momento de maior debilidade do homem. É literalmente uma desgraça que envelhece de modo perverso no momento em que se está mais desprevenido. Agora, não há momento mais confortável do que aquele em que você está em um estado de destruição, em um leito macio e já devidamente esquentado pelo seu calor corporal. O clima lá fora é friozinho e o da promete ser difícil e corrido. Daí, o maldito despertador me retira esse estado e grita para que eu vá para a batalha, porém, como uma serpente do Éden, pergunta se não quero mas dez minutinhos. “Dez minutinhos, e vai estar descansado como não pode fazê-lo em uma noite toda de sono”. “Apenas provam esse soninho e curta o momento”. “Está tão gostozinho aí, fica mais um pouco, eu te chamo depois”.
Mas não é verdade que essa soneca seja tão boa. A noite de sono é que foi. Poderia ter sido melhor, se tivesse deitado mais cedo ou se pudesse ser um bilionário que ganha dinheiro dormindo, mas não só não posso alterar o passado em que me deitei tarde, como não sou bilionário. Mesmo assim foi bom, e é por isso que meu corpo quer continuar ali. Mas (e os ideólogos de gênero terão que concordar pelo menos nisso) quem disse que é meu corpo quem decide o que vou fazer ou não? Eu tenho uma cabeça que controla esse corpo mole e não é esse peso morto quem dita os pensamentos da minha razão, mesmo que custe uma matemática de fuga ou uma microeconomia do horário de arrumação.
O botão soneca é um desastre! Apertá-lo é perder a primeira luta do dia, e digo mais, é dar o prelúdio para várias outras derrotas que virão ao longo do dia. “Deixa eu brincar um pouquinho, depois me empenho nesse trabalho”. “Você come só mais um pouquinho, depois disso é dieta, viu?”. “Só mais uma espiadinha, depois controlo minha imaginação e meus impulsos”. “Vou gastar só um dia, depois organizar minhas finanças”. “Só mais esse episódio, depois vou dormir”. É um ciclo que se retroalimenta.
Se eu tivesse poder, proibiria o uso desse modo soneca. Ao primeiro toque do despertador, todos pulariam da cama num salto, sem corpo mole (os melhores fariam uma oração de oferecimento do dia a Deus), depois arrumariam sua cama e iriam para o banheiro para ajeitar a aparência dentro do exigido ao contexto social. Esse vigor no momento menos favorecer seria a primeira batalha ganha no dia e vitamina para vencer outras: ganharia tempo, tornar-se-ia mais organizado, teria forças para começar uma dieta ou um exercício, daria ímpeto para se dedicar ao trabalho ou ao estudo de uma vez, criaria uma fortaleza para não fraquear ou ficar se lamentando ante as dificuldades, daria o ponto para saber parar aquele prazer ilícito, ensinando a dizer não a si mesmo.
Acha que exagero? Comece a fazer o teste. Não concorda que deve dizer não a si mesmo? Você deve ser muito egoísta, o verdadeiro mimadinho da mamãe.
Existem boas técnicas que podem ser feitas: colocar o despertador longe da cama, para ter de levantar para desligar; colocar uma música que dê uma injeção de ânimo (por muitos anos, usei a vinheta do plantão da Globo, acordava que era uma beleza); combinar contigo um castigo caso não levante na hora. Por aí vai, o importante é acordar no exato momento que for preciso e dar um salto da cama.
Aprendi certa vez com um padre que essa atitude era uma virtude e chama-se “Minuto Heroico”, e é aquele exato minuto primeiro do dia em que sua atitude “salva” todo o dia, quando se começa o dia vencendo. É muito difícil de praticar no começo, mas depois faz-se sem ver, como é próprio de toda obra. Quanta Fortaleza, Ordem e Temperança pode ser adquirida com uma prática tão simples.
Mas vale lembrar, o segredo também é ir se deitar no minuto certo. Já reparou que o mesmo corpo que não quer sair da cama de manhã é o mesmo corpo agitado que se recusa a dormir cedo? Machado de Assis diria que é uma eterna contradição humana. Porém é algo que deve ser combatido, fica muito mais fácil fazer do primeiro minuto do dia um minuto heróico se o último minuto do dia anterior foi também heróico. É possível gozar pois então do sono dos heróis.
Talvez se indague: “Mas e se eu não consigo dormir?”. Aí é questão de criar o traje, mas deite sempre no mesmo horário. Já pensou em programar o despertador para tocar na hora de dormir também? Se por se deitar todo dia na mesma hora, o organismo aprende que aquela é a hora de desacelerar e entrar em segurança, como os Teletubbies aprendem que é hora de dar tchau. Caso não adiantar, mesmo depois de dias, recomendo uma prática esportiva para cansar esse corpo que não quer descanso. Não precisa ser um campeão olímpico, mas umas corridas ao redor do quarteirão ajudam bastante.
Talvez Pedro possa refazer mais uma fez seu juramento perante Deus de que vai pular da cama na hora certa, talvez consiga deitar também na hora certa, talvez durma bem e levante de um salto na hora. Caso falhe novamente, olhará sonolento para o quarto e verá Jesus saindo do quarto. Perguntará então “Aonde vais, Senhor?”. E ouvirá o Mestre: “Vou fazer as obrigações das quais você foge”. Se isso não fizer Pedro pular da cama, sugiro que continue nela o dia todo, porque isso já é um caso de saúde pública.
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