Hangagud
- Carlos Neiva
- 11 de abr. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 19 de jun. de 2021

Ele tinha tudo preparado, ao menos era o que tinha pensado. Mas como ia ter certeza? Suicídio não é algo ao qual as pessoas normalmente têm o hábito de organizar friamente. Aliás, apesar de ser visto como frio e calculista, ele andava em pura combustão sentimental nos últimos meses. No meio do vazio sem sentido de cada um dos seus dias, acabou por optar dar fim a tudo isso. Preparou o momento, a carta com seus motivos e o pedaço de corda que usaria para se enforcar na ripa de sustentação do telhado, mas agora que era chegada a hora, percebeu que não conseguia dar o maldito nó de forca.
“Mas que merda!”, praguejava ele enquanto tentava fazer um nó. Após algumas tentativas falhas, fez um laço tosco e grotesco que mais parecia um emanharado do que algo que tivesse força para sustentar seu corpo pelo pescoço. Por fim, tentou puxar o grosseiro nó e percebeu que, por incrível que pareça, era firme. Então passou a outra ponta da corda pela ripa e amarrou-a bem com um nó um pouco menos grosseiro.
Pegou o tamborete e subiu para alcançar a forca. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam e sua face expressava um tique nervoso. Contou até três. Essa técnica era o que o tinha mantido produtivo nos últimos meses, quando o vazio sem sentido das horas o mantinha no desejo de inércia total. Respirou fundo e passou a corda pelo pescoço. Contou até três mais uma vez e chutou o tamborete.
Por alguns segundos, sentiu o sangue se concentrar na cabeça, buscou o ar, mas não o encontrou. Agitou os braços e as pernas e percebeu a visão ficando turva. Entretanto, o nó não suportou seu peso e se desfez. O corpo foi com força ao chão e o homem levantou-se tossindo e buscando ar desesperado.
“Olha, isso foi bastante vergonhoso.” – o homem abriu os olhos espantado e levantou a cabeça boquiaberto. Quem disse isso? Sentado no sofá, na sua frente, estava um velho barbudo de roupas cinzas e com um enorme chapelão pontudo (que lhe cobria boa parte do rosto) alisando a barba e o observando com desdém. “Você tinha ido bem até a metade, mostrou mais atitudes do que muitos, mas o que diabos foi esse final?”.
_ Quem é você?
_ Olha, está aí uma pergunta bem complexa. Tenho muitos nomes, sabe? Alguns me chamam de Vagante Cinzento, outros de O Encapuzado, outros de Senhor dos Corvos, outros ainda de Pai das Canções, há quem me chame de O Cego e quem ainda me chame de O Conselheiro de Viagem, há quem se refira a mim como O Sábio, mas sem dúvidas sou mais conhecido como Pai de Todos. Entretanto, estou aqui porque também sou chamado de Deus dos Enforcados. Eu sou Odin.
_ O pai do Thor? – perguntou o homem enquanto se levantava devagar.
_ Na verdade, é Thor que é o Filho de Odin, mas chuto que sua pergunta não veio do conhecimento dos feitos de meu poderoso filho, mas daqueles filmes de super-herói de Hollywood. Sinceramente, eu não gosto da confusão que eles fizeram, mas devo admitir que eles têm um certo valor de propaganda.
_ Você é um deus?
_ Sim, eu sou um deus. O pai de todos os outros, modéstia parte.
_ O que você está fazendo aqui?
_ Bom, eu sou o deus da forca. Qualquer um que se enforque ou que seja enforcado torna-se uma oferenda, uma homenagem a minha pessoa. Então vim assistir seu fim pessoalmente.
_ Existe um deus da forca?
_ Bom, eu sou deus de muitas coisas, deus das runas e das canções, da magia e da guerra, da sabedoria e dos corvos, também dos guerreiros, senhores, anfitriões e viajantes. Enfim, sou deus dos deuses e também deus dos enforcados.
O homem estava perplexo, não sabia o que dizer nem mesmo o que pensar. O velho deus parecia divertir-se com essa confusão. Odin levantou-se do sofá, caminhou até o homem e pegou a corda com o nó desfeito, tirando-a da ripa.
_ Olha só o servicinho grotesco que você fez aqui, é por isso que arrebentou. – disse Odin desfazendo o emanharado que sobrou na corda.
_ Eu não sabia fazer o nó. – disse o homem em tom de desculpas.
_ Poderia ter olhado um tutorial no YouTube, não é? – disse o deus em tom de deboche. Olhando de baixo, o homem conseguiu ver que o velho não tinha um dos olhos.
_ Eu não pensei nisso.
_ Não, claro que não. Afinal, nessa hora, quem é que pensa, não é? – o deus gargalhou – Dizem que quem pensa direito nessa hora não chega nesse extremo. Acho isso uma bobagem. – Odin estava fazendo o nó de forca.
_ Você não acha que é uma loucura? Digo, que é algo feito por alguém desesperado?
_ Claro que não. Quem diz coisas do tipo geralmente é gente muito apegada a própria vida. Eles não têm ideia de como é a sensação, do que se passa nesses momentos. – Odin exibiu o nó feito com perfeição e maestria – Viu? É muito fácil de fazer. Fui eu quem inventei.
_ E você sabe como é? Deuses não tem ideia de como é ser um homem. – após dizer isso, ele ficou impressionado com a coragem daquelas palavras.
_ Ah, claro que sei! Como acha que me tornei o deus dos enforcados? Eu criei esse nó para mim mesmo, e a primeira pessoa a usá-lo fui eu.
_ Você já se enforcou?
_ Isso os filmes de heróis não mostram – o deus gargalhou – Eu me enforquei em um galho da Yggdrasil, fiquei ali dependurado por nove dias e nove noites. Os outros deuses me ressuscitaram depois. Desde então, faço questão de assistir a cada repetição deste ato.
_ E por que você fez isso? – perguntou o homem.
_ Eu poderia dizer que foi o tédio da minha condição divina. Eu era um poderoso aesir, mas queria ser o mais poderoso e sábio de todos. Eu já tinha bebido da fonte da sabedoria, mas ainda não conhecia aquela realidade da qual nem mesmo os grandes sábios souberam dizer: a morte. Quantos sábios não conseguem um número fabuloso de discípulos exatamente porque se arriscam a dizer como é do outro lado da porta da morte? Mas eu te garanto que nenhum deles esteve realmente do outro lado enquanto pregavam sua teoria. Depois, é claro, atravessaram, mas antes não. Quando voltei, bom, eu era um sábio completo e trouxe comigo muitos dos conhecimentos dos mortos.
_ Então você não morreu por falta de opção – retrucou o homem –, mas porque queria algo. Sua vida tinha gosto.
_ Mas é claro que tinha, porém eu queria um gosto maior e melhor. Olha, o Sr. Durkheim falou de tipos de suicídios – Odin falava e alisava a barba –. Falou que há quem se mate por não haver lei, outros que o fazem para seguir uma lei e outros ainda que o fazem por não se encaixar em lei alguma. Acho uma abordagem válida, mas vejo por um ponto de vista muito mais simples. A morte é um grande abismo (O Abismo de Hel!) do qual a maioria tem medo de se aproximar, mesmo sabendo que uma hora ou outra serão atirados nele. Entretanto, há uma minoria que se sente consumida de curiosidade de chegar à beira do abismo e espiar lá embaixo. Esses curiosos eventualmente se atiram para poder espiar melhor. Cá para nós, pode falar: o que te impulsionou a tudo isso foi o desespero da vida ou a curiosidade de saber qual é a sensação. A morte era por fuga ou a curiosidade de finalmente poder sentir algo?
_ É... talvez – respondeu timidamente o homem –, eu queria saber como é o abismo, como é cair nele.
_ Pois então me pergunte, eu me atirei nele! – propôs Odin sentando-se novamente.
_ Como foi?
_ Eu sabia que precisava morrer, de que era a única maneira de alcançar o abismo do qual as raízes da Yggdrasil vinham. Pensei em me acertar com minha própria lança, Gungnir, entretanto, eu tinha muito receio se conseguiria dar golpe tão certeiro ainda que minha arma nunca erre o alvo. Foi aí que tive a ideia da forca. Parecia uma boa forma de me obrigar a não voltar atrás.
_ É... por isso pensei na forca também – observou o homem.
_ Um clássico! – Odin sorriu e continuou – Feito o nó, senti minhas mãos tremerem, minhas pernas fraquejarem, tive vontade de desistir, mas pensava em como deveria ser de lá, no quão bom poderia ser fazer a travessia, de que não tinha motivos para não o fazer. Coloquei o laço no pescoço e saltei.
_ E aí? – perguntou o homem interessado ao ver que a narrativa era parecido com o que havia passado consigo próprio.
_ Aí, eu senti o sangue indo todo para a cabeça, meus pés sacolejavam buscando algo em que se apoiar e as mãos queriam algo para agarrar. Os pulmões buscavam em vão por ar e a língua parecia que ia saltar para fora da boca. Acho que tive uma ereção. O pior eram as vistas que iam escurecendo das bordas para o centro, enquanto as formas embaçavam. Nessa hora, meu caro, o corpo começa a morrer, o cérebro entra em colapso, alucinamos e os batimentos cardíacos de muito agitados vão indo para parados por completo. A árvore dos mundos seguiu minha agonia e começou a murchar junto com meu corpo. Depois disso, uma tempestade caiu e agitou meu cadáver ao vento.
_ E como era do outro lado? – perguntou o homem interessadíssimo.
_ Rá! Isso eu não posso dizer. Grímnir não adquiriu o conhecimento dos mortos para repassá-lo aos vivos. Acha que eu sou um desses sábios de discípulos? Não, não mesmo. Se quiser saber como é o abismo, vai ter que saltar nele você mesmo.
_ Não há deuses para me ressuscitar depois?
_ E daí? Tem alguma coisa para fazer aqui?
_ Bom, tem as coisas que as pessoas esperam que eu faça.
_ Bah! As pessoas esperam demais uma das outras. Olham umas para as outras, julgam-se e condenam-se. Fazem planos e esperaram que os demais cumpram com o que foi traçado. Você não pode cumprir com a expectativa que os homens traçaram para você. A única coisa que fazemos é cumprir o que foi traçado pelas nornas.
_ Eu só queria poder sentir algo – o homem começou a chorar – algo que fizesse sentido.
_ E você sentiu! – respondeu o deus – Tudo aquilo que senti ao me enforcar na árvore dos mundos você também sentiu quando se pendurou no teto com esse nó tosco.
_ Mas o que eu queria sentir não é isso! Queria sentir algo bom. Algo como o amor ou o sentido de pertença ou a sensação de que fiz o que é certo.
_ Diante dos portões guardados pelo meu inimigo Fenris, todas as histórias encontram sua conclusão, seu desfecho final. Quer sentimento de tarefa concluída maior que essa visão? Quanto ao amor, o abraço de Hel reúne todos como iguais sem exceção. Não há nada mais acolhedor.
_ Mas não era isso que eu pensava?
_ E o que você pensava? – o deus tornou a gargalhar – Um campo verdejante de vida enfadonha? Ruas de ouro? Mil virgens? Um recomeço? Um prazer abstrato sem fim? Esse é o grande risco do jogo do abismo: atirar-se convicto de que sabe o que tem no fundo. A expectativa mata qualquer experiência.
_ Então eu já não quero mais nada disso! – bradou o homem resoluto.
_ Ah, agora não tem mais volta – disse Odin levantando-se – agora você já começou e eu estou aqui. Você é uma oferenda ao deus dos enforcados.
_ Mas eu me arrependo, mudei de ideia!
_ Não há como mudar de ideia depois de atirar-se no abismo!
O homem ficou paralisado de medo ao ver que o velho de roupa cinzenta, ao levantar-se do sofá, agora parecia um guerreiro incrivelmente forte, apesar de ainda ter cabelos grisalhos. Usava uma armadura no corpo e um elmo alado na cabeça. O aesir se aproximou dele e com um braço pegou-o pelo pescoço. Ele tentou lutar e se desvencilhar da destra firme do deus da forca, mas o deus o levantou até a altura da forca e o pendurou pelo pescoço. O homem se debatia buscando como sair dali. Seus olhos viam Odin afastando-se meio metro e observando a execução enquanto alisava a barba. O deus estava agora acompanhado de dois grandes lobos. Uma margem negra emoldurava a cena que aos poucos borrava-se. A margem se estendia até que toda a imagem se perdesse em uma escuridão abismal.
Na manhã seguinte, o Instituto Médico Legal recolhia o corpo encontrado pela faxineira. Algumas fotos foram feitas e depois o cadáver foi descido e levado para autópsia. No banco da frente do furgão, os legistas comentavam entre si sobre o fato.
_ Com certeza esse caso foi suicídio, a carta comprova. Mas algo me deixou incomodado.
_ O que foi?
_ Esse sujeitinho estava bem desesperado. Não sabia nem fazer um nó direito. Não sei como aquilo não arrebentou com ele.
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