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Solilóquios abissais

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 18 de jan. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de ago. de 2024


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Aqui estou eu, no Orco. A glória em que vivi um dia é passado, um passado do qual tenho nojo e ódio, um passado de servidão à Luz. Hoje, eu sou livre, e meu corpo está afundado num charco de lodo e lama. Minhas asas estão encharcadas, meus retorcidos chifres causam dor, bem como minhas garras que cravo em minha própria pele, e minha cauda está encolhida. Sinto cheiro de podridão, enxofre e mofo, sinto frio e fome, mas, mais que isso, sinto frustração, raiva e inveja.


Ah, sim! Inveja. Um dos sete grandes pecados que a todos os outros lideram. No dia em que Samael levantou-se contra o Onipotente, e bradou com força que fez calar os sete céus o seu “non serviam”, eu fui tomado de inveja pela sua atitude. Eu queria ter tido aquela coragem, eu queria ser como ele.


Também senti inveja e ódio do poderoso arcanjo que varreu a Samael e a todos nós para esse abismo, ele apenas interrogou-nos e fomos precipitados. Que poder aquele que o Onipotente lho concedeu! Se tivessem sido dadas aquelas forças para mim, talvez eu não afundaria nesse charco. Eu estaria na glória, e não teria invejado o brado de Satã.


Mas que se dane a glória! Não me aconteça de lamentar minha decisão perene. A inveja que senti me derrubou, mas me fez livre, libertou-me do opróbrio numinoso. Minhas asas doem, preciso levantar.


Naquele dia na eternidade excelsa, muitas foram as reações após o brado diabólico. Quando o orgulho gerado nas entranhas satânicas foi expressado em suas palavras, muitos espíritos começaram a conceber pecados submissos. Após o soberbo brado, quando Belial desejou um gozo mais sublime, quando Azazel prorrompeu-se em ódio, quando Belzebu anelou o bem todo para si, quando Belphegor omitiu-se diante do mal para não deixar sua comodidade e quando Mamôn recusou-se em quinhoar seu próprio bem, naquele mesmo momento, eu senti inveja de Satã.


Eu senti inveja! Eu concebi tal pecado! É meu! Mas que tragédia a minha! Naquele mesmo momento, Lúcifer invejava a própria destra do Onipotente. Sua inveja foi maior que a minha. Por isso, é ele, e não eu, um dos sete lordes infernais, um dos componentes do triunvirato infernal que se assenta no trono do Pandemônio. Que desgraça! A caída estrela matutina assenta-se ao trono e eu aqui afundado nesse buraco. Por falar nisso, ainda não levantei-me. Minhas asas doem.


Agora que me aprumo e estiro meus doloridos membros, a visão turva pela mudança abrupta. Giro com a cabeça na intenção de que as fúnebres cores que compõe esse abismo voltem a ser captadas pelos meus olhos. Maldição! Maldito seja Lúcifer! Eu invejei primeiro! Por que raios esse desgraçado não formulou outro pecado? Não poderia ele pensar tantas coisas? Não era ele o radiante?


E que culpa tenho eu, sendo criado pelo Onipotente de forma tão limitada, apenas como um simples arcanjo, enquanto o maldito é o grande serafim, o Beemot, a terrível besta que tudo esmaga sob seus cascos ? É o Criador que em seu sadismo me fez para ser menor? Fizera Ele a Estrela Matutina apenas para que eu sofra com meu próprio pecado por toda a eternidade? É essa a grande piada divina? Mas que miséria!


Ergo a cabeça e, ao fazer isto, noto que há uma alma desgarrada a correr pelo pântano infernal. Ele parece ter fugido dos diabos que a feriam, junto a outras, com espetos. Clássico! Mas parece ter fugido bem, caminha apressada olhando para trás, e seus algozes nem notaram sua falta do bando. Fito-a de longe, meus aguçados olhos captam sua essência: é uma alma invejosa. Se é invejosa, é presa minha.


Preparo as já espreguiçadas asas, e em um salto alço voo. Subo velozmente e em um mergulho atiro-me sobre o danado. Minhas garras rasgam sua carne, dou-lhe socos e pontapés, chego ao ponto de mordê-la. Minhas presas rasgam sua carne e sinto o gosto do sangue quente jorrando em minha boca. Ah, sangue! Fluídos de vida material que Aquele para o qual tudo foi criado desejou ter para com isso tudo redimir. Malditos sejam vocês humanos, com toda a sua miséria sempre passível de misericórdia. Basta pedir o perdão sincero e ele lhe é dado pelos méritos do sangue do Filho. Que sofra agora!


Plaino pelo pântano arrastando minha vítima pelo pé direito. Seu corpo se fere em atrito com o chão. Ouço seus gritos, cravo minhas garras na sua perna, jorra mais sangue, os gritos aumentam, aquilo é maravilhoso. Por um tempo continuo minha tortura, o grito daquela alma soa como música aos meus ouvidos e me sinto feliz. Esqueço de Lúcifer e das minhas dores, esqueço o quanto abomino esse lugar, esqueço o quanto me odeio.


E de repente eu me enjoo daquilo. Pego o maldito e lanço em uma árvore e deixo que se emaranhe nos cipós e espinhos. Caminho novamente para o buraco em que eu estava. Nesse momento, volta a minha mente a imagem de Beemot, no trono, junto com Beelzebuth e Leviatã.


Ele é melhor do que eu? Sim, eu sou a perfeição da minha própria espécie cuja existência encerro toda em mim, mas há uma espécie mais perfeita, uma perfeição que nunca serei capaz de atingir. Lúcifer é superior, por isso sua inveja é mais audaz que a minha. Isso tudo é muito injusto. Eu queria ser um serafim, como Satanás fora. Se eu o fosse, teria invejado não a atitude da antiga serpente, mas desejado o trono do próprio Todo Poderoso. Aí eu estaria à frente de Lúcifer, teria formado o triunvirato e seria rei nas hostes infernais. Quem sabe se sobe o meu governo não teríamos já derrotado o inimigo?


Atiro-me novamente em meu charco. Encolho-me novamente. Eu odeio ser comandado por aquele desgraçado, mas tenho tanto medo de seu poder. Eu detesto esse lugar, mas para onde eu iria? Sou um decaído e não tenho outra escolha a não ser esconder-me do olhar do Altíssimo. Eu me odeio por não ser capaz de ser como os grandes lordes abissais. Eu sou um maldito, um verme, um lixo. Eu me odeio. Eu me odeio. Eu me odeio.


Minhas garras cravam minha carne. Afundo no charco fétido. Não tenho esperanças de um dia subir de posição. Tudo está acabado. Minha criação me consome dia e noite. O que resta agora é choro e ranger de dentes.


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Ilustração para este conto feito pelo artista Rafael Souza Marques. Conheça mais o trabalho dele clicando nesta imagem.

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