Estudar no domingo é pecado?
- Carlos Neiva
- 17 de jul. de 2024
- 5 min de leitura

Publicado originalmente em 2016.
Comentávamos enquanto lavávamos a louça o que cada um teria planejado para aquela tarde de domingo, um amigo logo tratou de dizer que dormiria o dia todo, pois estudar no domingo é pecado. Não sei se agia de má fé ou se só repetia sem pensar as palavras de um prelado conhecido nosso, o fato é que ali mesmo prometi escrever este teto que o leitor tem frente aos olhos como prova de que tal raciocínio está bem errado.
Primeiro, vamos entender o ponto de vista de quem ode com direito fazer essa alegação, depois vamos às fontes. Estudar é um trabalho, assim afirmam aqueles cuja lógica associa o estudo a um ato pecaminoso durante o dia consagrado ao Senhor e, portanto, livre de trabalhos servis. Trabalhar no domingo é pecado, mas estudar é mesmo um trabalho?
Há três formas de se encarar essa realidade: sim, não e mais ou menos. Quem afirma que o estudo é um trabalho, pensa no fato de que um estudante está se ocupando e se empenhando para o bem da sociedade, afinal, um estudante é alguém pesquisando, problematizando e desconstruindo paradigmas, suas colocações são tão indispensáveis quanto a do operário na fábrica ou o lavrador nos campos. Logo, o estudante merece todos os direitos de um trabalhador, e deve reivindicar esses direitos: deve ter apoio do governo, deve ter meio dignos na escola, deve compor associações e sindicatos, deve ter uma carga limite — diária e anual — de atividade, deve ter um dia no ano dedicado a si e deve fazer greves quando julgar conveniente. O estudante é um trabalhador, pois é mais uma engrenagem na máquina que é o Estado.
Mas talvez o estudante não seja um trabalhador no sentido estrito, só mais ou menos. O estudante está mais alguém em vias de ser, alguém que se prepara para vir a ser um profissional qualificado, e que, por isso, a sociedade permite que não contribua por um tempo, pois está preparando para contribuir melhor. O estudante passa a ser um investimento da sociedade, um depósito bancário que será retirado depois com juros. Nesse sentido, o estudo não é bem um trabalhado, mas é uma preparação para tal.
O problema dessas duas soluções é que elas não olham o estudo em si, mas tentam criar uma utilidade prática para o estudo de uma forma que contribua com a sociedade. A partir disso, é a adesão dele ao Estado ou ao livre-comércio que será referencial para avaliar o estudo. Essas duas formas de ver são errôneas, pois tentam ver utilidade em algo que em si não tem. O estudo é inútil!
É claro que há efeitos secundários colhidos pelo estudo: alguém que estudou pode desempenhar melhor uma profissão, alguém que estudou vai crescer no mercado de trabalho, alguém que estudou vai comandar as massas pela revolução, alguém que estudou não vai cair no mundo das drogas ou da criminalidade. Todos esses efeitos surgem em consequência, secundariamente, por isso não são necessariamente certos. O estudo autêntico surge simplesmente por que o sujeito quer saber. Saber para quê? Para saber, ora! Saber já é um prêmio excelente para quem busca o conhecimento com retidão, mesmo que vá morrer segundos depois com aquele conhecimento.
Esse ao menos era o pensamento dos gregos, que viam no estudo uma coisa boa para se passar o tempo, uma vez que não se tinha trabalho a fazer, então todos se reuniam e iam discutir a origem das coisas. É a época das scholé, palavrinha grega que quer dizer “lugar do ócio” e que gerou a palavra portuguesa “escola”.
Quer dizer que estudar é coisa de gente atoa? Sim e não. Os gregos chegaram com êxito à noção do mundo espiritual e da alma humana e notaram que enquanto o alimento nutre o corpo, o estudo nutria a alma. Não demoraram a dividir os trabalhos segundo ao diziam respeito: as coisas que cuidam do corpo são corporais e as coisas que cuidam da alma são espirituais. Assim, trabalhos como lavrar, construir e caçar são trabalhos corporais, estudar, pintar, esculpir e rezar são trabalhos do espírito.
Para um grego, era evidente que embora os trabalhos corporais fossem indispensáveis para a sobrevivência, os trabalhos espirituais eram mais sublimes, pois faziam o homem transcender: mais do que sobreviver, viver de forma altíssima. Essa era a forma dos gregos conceber os estudos e essa era a forma de pensar de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Isso já resolveria a questão: estudar não é um trabalho, logo, não é pecado estudar no domingo, mas vamos um pouco mais além nessa digressão. Afinal, falamos de pecado e do terceiro mandamento do decálogo, algo que se refere ao povo judeu e não aos pagãos gregos.
Os gregos tinham a visão de que os trabalhos da alma são superiores, assim, alguém que lidava apenas com trabalhos servis não era apto para governar, pois era uma pessoa apegada em demasiado ao mundo material. Já os judeus viam o trabalho como uma consequência do pecado original, e por isso ainda mais o viam como algo sujo. Assim, mais do que ser algo que impedia de governar, era algo que não se praticava no dia do Senhor.
Mas o que um judeu faz no sábado? Bom, até um judeu legalista, que tinha até os números de passos permitidos de dar, dedicava esse dia a ir à sinagoga. O que um judeu faz na sinagoga? Ouve a doutrina, estuda a lei e aprende a história do seu povo. Um judeu não apenas reza durante o Sabah, mas dedica-se ao estudo da Torá e dos profetas. Vale lembrar que os judeus têm suas escrituras santas como fundamento de toda sua cultura, não é só um livro religioso, é o código de leis e a compilação da sua história. Uma criança judia aprende as letras do seu alfabeto hebraico com os Salmos.
Então, um judeu não fazia coisas servis e sujas no dia do Senhor, mas só coisas elevadas, como rezar e estudar. Os grandes mestres tinham suas escolas, como Gamaliel, e o próprio Jesus, apesar de ter sido acusado de violar o sábado com curas e exorcismos nunca foi acusado de pregar e ensinar no templo em dia santo, se houve alguma acusação foi referente ao conteúdo do seu ensinamento, mas nunca ao fato de ensinar no sábado, pois o estudo não viola o terceiro mandamento.
Nós católicos trocamos o dia santo para o domingo, o dies domini em que Cristo ressuscitou e desde o início foi o dia especial dos cristãos (basta conferir Atos XX, 7 e I Coríntios XVI, 1–2), nesse dia cumprimos o preceito de dedicar o dia ao Senhor, em não fazer trabalho servil e irmos à Missa. O resto do dia é um dia de descanso, de fazer coisas que não exigem tanto das nossas forças, mas também de fazer coisas que edificam nossa alma. Além de ajudar na paróquia, o estudo é um excelente meio de cuidar da alma, e por isso, não só não é pecado, como é louvável fazê-lo.
Em nossa era pragmática, em que tudo é tachado pela utilidade imediata, o estudo parece uma perca de tempo ou um trabalho desgastante, e o ócio é entendido como simplesmente não fazer nada ou vegetar como uma ameba inútil. O ócio é fazer atividades que não tem utilidade, mas nem por isso são menos louváveis. Estudar no domingo é uma excelente forma de guardar a espiritualidade do dia e de crescer espiritualmente. Estudar no Domingo não é pecado, é uma maravilhosa forma de cumprir esse preceito.
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