Cristo, o diabo e eu
- Carlos Neiva
- 17 de jul. de 2024
- 21 min de leitura

Publicado originalmente na quaresma de 2017.
I
Um dos episódios que mais me marcam nos evangelhos é, com certeza, o da tentação do Senhor no deserto. Um momento de combate épico entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo, entre a salvação e o pecado. Uma batalha que não ocorre em um combate corpo a corpo, onde cada um empunha uma light-saber, mas um combate que se dá no nível intelectual, por meio de indagações e respostas, formando um prato cheio para qualquer teólogo. E a prova disso é que todos os evangelhos sinópticos narram o fato, e que muitos teólogos escreveram sobre (Joseph Ratzinger, por exemplo). Eu não prometo nenhum tratado teológico, porque não sou teólogo, sou apenas alguém que fala o óbvio de uma forma complicada.
Jesus é conduzido pelo Espírito Santo ao deserto para jejuar e orar. É muito estranho pensar que Deus precise orar, dado que oração é falar com Deus e que Ele é Deus, e mais estranho ainda é pensar que ele jejue. Deus nem devia sentir fome, quem dirá oferece-la como expiação. O jejum e a oração fazem-nos fortes para enfrentar as tentações, mas porque Cristo precisaria se exercitar para um combate que já estava ganho?
Aí entra a resposta para muitas perguntas que se formulam assim. Para mostrar o caminho, não apenas para mostrar por onde se percorre, mas para criar o caminho a se percorrer, como quem vai a frente com o facão abrindo passagem no matagal.
Como redentor de todos os homens, não só dos seus contemporâneos e dos que viriam a nascer, mas também dos povos antepassados, Jesus redime a história passando pelo deserto como o povo hebreu, tendo fome e sendo excitado a tentar Deus, como o povo de Israel no deserto, “como em Massa no deserto aquele dia”. Aqui já vem a genialidade do diálogo que se dá entre Cristo e o diabo, é um show de referências para Capitão América nenhum botar defeito.
Entretanto, é preciso colocar mais algumas complicações. O diabo não tem poder para tentar ninguém sem a permissão de Deus. Por que Deus permite sermos tentados? Logo respondo a essa pergunta. Por que Deus permitiu ao diabo tenta-Lo? Isso é um mal! Ora, acontece que Deus muitas vezes deixa que as criaturas façam o mal em seu livre-arbítrio para dele tirar um bem maior ainda. Por isso, Deus permitiu que o diabo lhe tentasse, assim ele enfrentaria e venceria a tentação e daria o exemplo a seguir, fazendo-se como o novo Adão que não caiu nas enganações de Satanás, ao contrário do primeiro. Cristo não saiu mais virtuoso dessa tentação porque ele já possui toda as virtudes no máximo, mas soube tirar um bem imenso disso para nós.
Isso leva a pergunta: será que o diabo é tão burro que não percebeu que ia perder essa e fazer um bem tremendo que deveria evitar? Se tem uma coisa que o pai da mentira não é, essa coisa é burro. O divisor é muito astuto para cair em algo tão lógico. Por que caiu então? Acontece que o diabo também tem vontade, e essa é mais deformada que a nossa. Ele não resiste a fazer o mal, mesmo que, se o evitasse, faria um mal maior. Ele precisa fazer o mal no momento em que é possível, como uma criança diante de um doce. Pergunte à criança se ela prefere um chocolate agora ou esperar uma hora e ganhar dois chocolates. É óbvio que ela prefere um chocolate agora. É muita tentação para ela! E é aí que entra o ponto. O diabo é quem foi tentado, e fracassou miseravelmente.
Eu tentação foi essa pela qual passou o diabo? Ora, ele viu a possibilidade de tentar Deus. Ele sempre perseguiu o homem porque queria tentar acertar o Deus que tanto despreza. Na sua megalomania, viu a oportunidade de entrar em um combate de “igual para igual” com seu maior inimigo. Ele não ligava muito para o fato de que era impossível tentar Deus. Tentar Deus para ele já era algo que fazia seu ego se deliciar de satisfação. Ou seja, o diabo não é burro, só é orgulhoso demais. É tipo um daqueles vilões egocêntricos dos desenhos animados que estão tão confiantes da sua superioridade que deixam os heróis arruinarem seus planos.
Mas que fique claro que não é só o demônio quem tenta. Caso fosse, quem tentou o demônio? Ele seria “motor-tentável que tenta sem ser tentado”? Não mesmo, muitas vezes somos nós quem tentamos a nós mesmos. Muitas vezes é nossa carne que cai nos instintos mais bestiais, ou nosso intelecto que se reveste da arrogância diabólica. Por muitas vezes, oferecemo-nos todas as tentações ao nosso alcance e a compramos de nós mesmos, como o Chaves no episódio dos churros.
E tentando a nós, tendo o diabo ou não agindo externamente, já temos a chance alta de perder a guerra, pois o inimigo está dentro das muralhas, como o Cavalo de Tróia. Na verdade, somos estúpidos e trocamos o bem real por algo que só aparenta ser bom. O ser humano não é mal, ele deseja e se inclina para o bem, só que as vezes não sabe diferenciar o mal do bem. Aceitamos a maçã envenenada porque parece agradável aos olhos. Pecar, no fundo, é uma questão de mal gosto.
Mas por que Deus permite sermos tentados? (Eu disse que responderia a essa pergunta). Por que Deus consente que o maligno venha nos empurrar para o mal. Não seria melhor se Deus nos protegesse? Acontece que Deus é campeão em tirar um bem maior de uma má ação. E ele nos deixa sermos tentados para que, resistindo à tentação, alcancemos méritos e cresçamos em santidade. Em termos mais joviais, vamos dizer que Deus põe inimigos no caminho para que ganhemos XP.
Na oração do Pai-Nosso, pedimos para não cairmos em tentação. Note bem, não pedimos que nos livre das tentações, mas para que elas não sejam motivos de queda ao ser-nos apresentadas. Tanto é que Deus não permite que sejamos tentados em um nível maior do que possamos suportar. Cada um encontra dificuldades abaixo do seu nível de XP que ajudam a elevá-lo. Ou seja, os mais virtuosos são os que são mais tentados e, consequentemente, são os que precisam de mais oração.
Mas Cristo venceu a tentação exatamente para abrir o caminho e mostrar que é possível vencer. Inclusive, ele ensinou a manha para facilitar o entrave: faça oração e jejum antes. Santa Teresa de Jesus, a Teresona, já dizia que “Quem não reza não precisa do demônio para ser tentado”. A oração mantém-nos próximos de Deus que é quem dá as forças necessárias para não cair. E unida à penitência, possibilita ao espírito e à carne estarem fortes o bastante para as adversidades que atacarem.
Pensando nisso, a Igreja preparou um tempo exato de penitência e oração, que é a quaresma. Nesses quarenta dias, o mesmo tempo que Jesus ficou no deserto, a Igreja faz um convite a viver com mais sobriedade, mais sentido de oração e com muita penitência. Já narra o hino do ofício de leituras desse tempo: “Usemos de modo sóbrio da fala, bebida e pão, do sono e do riso e, atentos peçamos a Deus perdão”. A Quaresma é mais do que uma época para ficar sem fazer uma coisa que gosta. Fala sério, isso é coisa que as crianças da catequese aprendem a fazer! Um cristão adulto já tinha que estar fazendo exercícios quaresmais bem mais avançados. E creio que essa estrofe do hino mostra um caminho.
Assim como Cristo enfrentou o demônio em um combate épico, assim podemos nós vencermos a tentação. Cada um pode vencer seu próprio combate espiritual que só ele mesmo sabe do que se trata. É possível e a quaresma é um tempo favorável para isso. Travemos portanto esse combate com coragem e determinação! Pois não falta-nos a graça de Deus, o exemplo de Cristo e os ensinamentos da Igreja.
II
A tentação de Jesus é uma das passagens mais fabulosas, um verdadeiro combate entre o bem e o mal onde Deus e diabo enfrentam-se não corporalmente, mas Deus permite que o diabo o tente, e este, vaidoso que só, tem a petulância de tentar aquele que é toda a perfeição. Parece até um conto machadiano, mas é a mais pura Palavra de Deus.
O diabo não tem certeza plena de que aquele é o Messias, e as duas primeiras tentações são uma certificação de que se trata de fato do Filho de Deus. Por isso, ele se aproxima de Cristo. Fico imaginando o que pensava o pai da mentira. Deve ter visto aquele homem virtuoso, notou que ele orava e jejuava, tentou achar um cúmplice dentro desse homem, a concupiscência que todos sofremos. Não encontrou pecado algum, então começou a suspeitar de que fosse o Cristo iniciando sua missão redentora, mas antes de agir contra Ele, decidiu testar suas hipóteses. Parece que o diabo é empirista.
A primeira tentação começa com uma provocação. “Se Filius Deis es… (Se és Filho de Deus…)”. O demônio quer provocar o Cristo. No dizer popular, ele está “jogando verde para ver se colhe maduro”. O diabo quer testar a carne de Jesus, ele quer ver se pode inspirar os pecados bestiais, que rebaixam a natureza humana.
Ora, Jesus passou quarenta dias jejuando, é óbvio que sentiu fome. É interessante notar que muitas pessoas acreditam que o número quarenta é apenas simbólico, mas não acredito. É perfeitamente plausível que Jesus tenha feito esse jejum rigoroso. Vejamos, ele não estava sem água. Os Evangelhos não falam nada de água. Jejum é de comida, não existe jejum de água. Nunca, em toda tradição judaico-cristã houve jejum de água.
Agora, pode um homem ficar quarenta dias sem comer. Se tiver bom porte físico, sim, pode perfeitamente. Mais de uma vez ouvimos histórias de sobreviventes que passaram em torno de quarenta dias (uns mais, outros menos) sem se alimentar. E Jesus tinha por te físico para isso, é alguém que conseguia carregar uma cruz d emadeira monte acima após ter sido flagelado.
Após quarenta dias no deserto, Jesus estava faminto, e o diabo soube se aproveitar disso. Já viu alguém comer depois de sentir muita fome? A voracidade é tamanha que, infelizmente, perguntamo-nos se aquilo é um homem ou um bicho (vide “O Bicho”, de Manuel Bandeira). O demônio é mestre em rebaixar os homens ao nível bestial, e ele traz exatamente essa prerrogativa para Cristo.
Ut lápides isti panem fiant! Que essas pedras tornem-se pão! O diabo faz um rebuliço aqui afim de confundir Cristo. Não deu certo com Ele, mas talvez fiquemos nós um pouco confusos. Se Cristo transforma as pedras em pão, é claramente alguém com poderes, mas se for um charlatão, ainda que sinta fome, não pode fazê-lo. O enganador jogou um paradoxo para que Cristo resolvesse, mais ou menos como aquele ateuzinho do curso de humanas que diz “Deus pode criar uma montanha tão alta que Ele não pode subir?”. É uma questão de contradição filosófica, satanás fez um estratagema para aumentar as chances de ganhar na loteria. Outra característica do diabo é que ele é um experiente apostador.
Jesus jejuou. Essa sentença não é só difícil de dizer rápido em voz alta, é uma sentença que trava nossa lógica. Por que Deus impecável precisa jejuar? Jesus abstêm-se de comer para dar o exemplo, e por isso, não pode ser admoestado pelos discípulos joaninos, anos depois, sobre a doutrina do jejum. Cristo redime o povo hebreu que teve fome de pão no deserto, e dá o exemplo às próximas gerações de como proceder. Apenas a penitência pode fortalecer o espírito humano para vencer as tentações, sobretudo as da carne.
Na Sagrada Escritura vemos o drama do povo hebreu: “Ele te humilhou, fez com que sentisses fome e te alimentou com o maná que nem tu e teus pais conheciam, para te mostrar que o homem não vive apenas de pão, mas de tudo aquilo que procede da boca de Deus”. (Deuteronômio VIII, 3). É exatamente essa passagem que faz o Capitão América bater as mãos na mesa e gritar “Eu entendi essa referência”.
Cristo sentiu fome e o diabo fez com que ele tentasse resolver o problema por si mesmo, sem confiar em Deus (tudo bem que Ele é Deus, mas vamos abstrair isso por uns instantes). Cristo porém não precisa de Deus, mas do que procede da boca do Pai. O que procede da boca do Pai? O próprio Verbo Encarnado! Cristo é ao mesmo tempo aquele que redime o povo hebreu e o pão que alimenta. O diabo fez mais do que uma tentação carnal ou uma pegadinha filosófica, ele havia elaborado um teste teológico.
Cristo passa pela provação ao citar a passagem que acabei de referenciar-me. Assim ele prova que está ali para redimir a humanidade, e que não veio para servir, mas conformar sua vontade a de seu Pai. Cristo acerta onde o povo hebreu errou.
Desejar as necessidades espirituais acima das necessidades carnais é um grande ensinamento para todos os homens, que tantas vezes caem exatamente porque o diabo os tenta no âmbito dos instintos animalescos: a gula, a preguiça, a luxúria, a vaidade, a avareza e a inveja. Nada mais são do que os desejos carnais arraigados de querer desenfreadamente alimento, comodidade, sexo, a si mesmo(a), e bens materiais (ainda que alheios).
A solução para não cair nesses instintos é exatamente a proposta por Jesus, a mesma que a Igreja prega, sobretudo na época da quaresma (em que a Igreja se põe na experiência dos quarenta dias de Cristo no deserto): orar e jejuar. Por jejum, tente entender algo além do “ficar sem comer”, mas a penitência como si. Colocar o corpo a prova por meio de situações desconfortáveis. Ficar sem comer algo agradável ou ter de comer algo desagradável; abandonar um conforto e prazer ou impor-se um desconforto e desprazer; renunciar a um bem material ou abraçar uma necessidade. São exercícios como esses que treinam o corpo para momentos de tentação e dificuldade.
A fome de pão é mais do que uma vontade de bater um Mc-Burger, aqui estão representadas todas as fraquezas da carne que se baseiam nas necessidades instintivas. Quantas vezes o homem busca o conforto ou o sexo desregradamente, como quem quer transformar magicamente pedras em pão? Muitas vezes essa proposta foi feita a tantos homens e tantas mulheres. “Que esse trabalho torne-se ócio!”, “Que essa pessoa torne-se objeto do seu prazer!”, “Que sua imaginação torne-se sua satisfação!”, “Que esse bem alheio torne-se seu!”. Quantos não caíram no estratagema demoníaco!
Outra tentação que a sociedade passa é a de buscar solução para a fome de maneira fácil, como que mágica. É claro que a fome e a desigualdade são coisas horríveis, mas acreditar que um sistema ou uma ideologia podem erradicar a fome é a mais tola falta de fé. É tudo tão patético como o povo hebreu murmurando contra Moisés e Aarão. Se soubessem que não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra proveniente da boca de Deus, procurariam a justiça em Cristo, e não por meios humanos, solucionariam o problema, ou ao menos o amenizariam, pois o homem sempre gera um mal que não deseja. Mas soluções instantâneas, repito, como que mágicas, são tentações ilusórias como comer pedras pensando tratarem-se de pães.
A primeira tentação resume todas as provas pela qual a carne passa. Cristo vence a materialidade, provando ao diabo ser alguém cuja vontade está ligada a vontade de Deus (e isso nada mais é do que ser santo). Com sua resposta categórica apoiada nas Escrituras, Cristo ensina que é possível ao corpo ser educado, e abre a possibilidade de vencermos também nós às tentações da carne.
III
As três propostas que o Diabo faz a Cristo no deserto mostra o quanto o serafim caído ainda possui muito conhecimento teológico, trazendo à tona que não basta entender muito sobre os mistérios divinos se não os acolher no coração. Ao notar um homem diferente dos demais, o diabo começa a levantar suspeitas de que seja a concretização dos planos de Deus, que lhe haviam sido mostrados no dia em que bradou “Non serviam!” (Não servirei!), o diabo portanto, aproxima-se para ver se realmente se trata do Deus todo poderoso rebaixado a forma da carne humana.
Jesus era um homem comum, no sentido que vivia de uma forma muito normal, até os seus trinta anos. Trabalhava, sorria, rezava, cumprimentava os outros na rua, comia e bebia. Ele não era nenhum Johnny Act desses piedosos que usam roupas diferentes e fazem coisas estranhas que chamam a atenção. Talvez por isso, espantou seus parentes ao falar com uma autoridade maior que a de Moisés. Pois quem teria a pretensão de querer dar sentido às Escrituras sendo apenas um simples carpinteiro?
Mas o diabo era um pouco mais esperto do que judeus habitantes de Nazaré. Ele com certeza notou que não havia pecado algum naquele homem, notou que Ele possuía muita virtude e que não era concupiscente. Em outras palavras, o diabo se deu conta de que Jesus não estava no cadastro infernal. “Nada consta”, o diabo deve ter visto em seu livro, e pôs-se a perguntar “Como assim? Todo mundo tem registro aqui. Quem é esse cabeludo?”. O diabo deve ter pulado alto ao notar o nome da mãe do tal carpinteiro. “Nada conta também? Mas não é possível! Então chegou o dia da plenitude dos tempos? Preciso averiguar”. E foi assim que ele foi ter com Jesus no deserto.
Empirista muito racional, o diabo decidiu propor um teste. “Primeiro vamos ver como está seu corpo e depois a alma, daí atesto a unidade do seu ser. Resolvo algumas dúvidas sobre questões teológicas que ainda vão dar o que falar na Idade Média”. O diabo testou a concupiscência da carne de Cristo, e agora testa o espírito dele com uma segunda proposta. “Mitte te deoursum…”. As duas primeiras tentações são um teste para saber se aquele é ou não o Messias. Por isso, começam com a condicional “Se Filius Deis es…”.
O diabo levou Jesus para parte mais alta do templo, segundo alguns historiadores e exegetas, que apontam o exato lugar que poderia ter sido, esse lugar era muito alto, tão alto que dava vertigem ao se olhar para baixo. Jesus com certeza estava tão desconfortável quanto o Capitão Jack Sparrow em Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas, e poderia perfeitamente repetir a mesma piada “Sabe aquela vontade que as pessoas tem de se jogar quando olham de um lugar muito alto? Eu não tenho isso”.
De um lugar tão assombrosamente alto, o diabo põe o espírito de Jesus a prova. Ele tinha jejuado, a carne enfraquecida passou no teste, mas o espírito estava firme, o diabo então preparou o terreno para que Jesus estivesse de ânimo (mesmo radical latino que “alma”) abatido. Assim seu espírito estaria suscetível à tentação. O demônio é, de fato, um estrategista muito bom, tramando planos mais bem elaborados que os de muitos líderes políticos por aí.
Do alto do templo, o diabo lança mais uma dúvida. Ele cita a Sagrada Escritura, os versículos onze e doze do salmo noventa e um, e até prega a existência dos Santos Anjos. Ele é um excelente teólogo, mas até quando se utiliza da verdade, é para trazer dúvidas. Vê-se aqui, pela primeira vez na história da era cristã, o pecado de heresia, isto é, de uma interpretação pessoal das Escrituras que contém um grave erro. Interessante, não é? O diabo é o primeiro herege e o primeiro excomungado, mesmo sendo um espírito angélico e um teólogo brilhante.
Um pecado que pode ser cometido a nível espiritual é o de duvidar e perder a confiança em Deus. O risco de perder a fé. Tentação essa que aflige os homens nos momentos de grandes dificuldades e diante de heresias, e era exatamente nessa situação que Jesus se encontrava. Cristo fica ali se equilibrando no alto do templo (devia ventar muito) ou se joga e confia que Deus o salvará? Mas e se Deus não o salvar? O que fazer?
Por sorte, Cristo é mais astuto que a serpente, embora seja mais simples que a pomba (talvez seja por isso que o batismo e a tentação sejam eventos consecutivos), e Ele conhece as Escrituras melhor do que o diabo, por um simples motivo, foi Ele quem as escreveu. E é por isso que análise literária de autor vivo está proibida em concurso público. A resposta para esse impasse teológico está no versículo dezesseis do capítulo sexto do livro do Deuteronômio, portanto a Toráh. Cristo demonstra o erro da interpretação pessoal de uma passagem isolada e ainda mostra que seu espírito não está tão atribulado quanto devia. Ele não duvidou de Deus em momento algum. Sua paz de espírito não foi tirada.
Nessa segunda tentação, o que o diabo quis por em cheque é se Jesus confiava em Deus, uma tentação totalmente espiritual que envolve a fé. Cristo mostrou tanto que não podia ter a fé abalada por uma heresia e dificuldade qualquer, mas que sua fé era a sua segurança. Manter-se firme nas dificuldades e atribulações confiando plenamente em Deus, com uma paciência de Jó, é não cair nas tentações espirituais. Por isso, por mais difíceis que sejam as dificuldades, por mais complexas sejam as dúvidas, manter a fé e não tentar a Deus exigindo que Ele faça da forma que julgamos ser melhor, mas que conduza tudo como bem planejar, mesmo que a custa de sofrimentos pessoais, assim se resiste à tentação. Ao menos foi esse o caminho trilhado e ensinado por Cristo, caminho esse que será reforçado no Horto das Oliveiras, três anos depois.
IV
O que não teria passado o diabo na época de Jesus. Ele com certeza notou que havia um simples carpinteiro em Nazaré em que ele não podia tocar. O sujeito não pecava nem podia ser tentado. O diabo até pensou que se tratasse do Deus Encarnado, mas tudo que o tal de Jesus era trabalhar na carpintaria com muito amor e simplicidade. E se tem uma coisa que deixa o diabo confuso, essa coisa é a tal da simplicidade.
De repente, Jesus está no deserto em oração e jejum, e Deus permite que o diabo vá tentá-lo (sim, é Deus quem permite). O diabo então põe-se a se perguntar se é de fato o Messias, ele logo cai em uma situação parecida com a de uma criança mimada no meio da Ri Happy. A curiosidade incontrolável de saber se de fato é o Messias e, se for Ele mesmo, a possibilidade única de tentar Deus. O diabo teria taquicardia se tivesse coração.
Após tentar seu corpo propondo uma solução mágica para suas necessidades mais básicas, pondo a vontade do homem contra a vontade de Deus, o diabo foi derrotado, mas ele sabe lucrar com as derrotas, e saiu com a certeza de que o corpo era forte. Então tenta mais uma vez, e após tentar o espírito de Jesus com a dúvida e a heresia, ele é mais uma vez derrotado pela Fé. O espírito era também forte. As duas derrotas trouxeram uma certeza que fez o diabo saltar de alegria de uma forma nada viril, como se fosse a sua versão no desenho d’As Meninas Super Poderosas.
Ali estava o diabo, com a certeza empírica de que se tratava do próprio Deus humanado. E ele estava com passe livre para tenta-lo. Como excelente teólogo que é, sabia bem como tentar o Messias anunciado e prefigurado desde antes da criação do mundo material. Após tentar corpo e espírito, o diabo quis tentar a missão redentora cujo receio fazia Cristo suar sangue.
Ao se olhar para o ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, vemos um garotinho que olha assustado dois arcanjos que exibem os objetos utilizados na Paixão. O jovenzinho segura com força os dedos da Sua Mãe Santíssima, Ela não olha para o Filho, mas para quem observa o quadro, como se dissesse “Foi por você”.
O diabo oferece a Cristo uma proposta de troca, um pacto, ele leva Jesus ao alto de um monte (Nos montes, sempre acontece grandes coisas relativas à missão dada por Deus: Horeb, Sinai, Tabor, Getsâmini, Gólgota etc.) e lhe mostra todos os reinos e poderes da Terra: “Haec tibi omnia dabo, si cadem adoraveris me”. (Eu te darei tudo isso, se se prostrares adorando-me). Acho que a Neo-Vulgata tem uma particularidade que a língua portuguesa não expressa. “Cadem” é tanto cair por terra em adoração como cair de fato. O diabo quis inverter a ordem das coisas, fazer de Deus o caído e dele o que é adorado.
Existem pessoas que acham que podem fazer tudo por elas mesmas, resolverem os problemas do mundo. Elas pensam que vão salvar o mundo pelos méritos próprios, e os meios para fazerem as coisas sãos tentações. Já viu como elas ficam quando tem a chance de fazer algo com as próprias mãos? Pois é, é mais ou menos assim com Jesus, mas Ele não acha que pode, Ele realmente pode.
Imagino que, para Cristo, a ideia de viver um messianismo terreno, reger tudo politicamente, construir um mundo melhor, era uma tentação, ele tinha capacidade para isso, e com toda a certeza sentia a indignação pela dor de cada alma sofrida desse mundo. Ele era mais do que um altruísta, Ele conhecia os pensamentos, queixas, dores e frustações de cada pessoa, apenas olhando nos olhos dela. A ideia de governar o mundo e criar um reino de justiça e paz devia ser tentadora. Tanto que, três anos depois, Pedro vai propor a mesma coisa, e Cristo chamará o primeiro papa de satanás.
Se Cristo cairia nessa tentação? Jamais! Se ela deve ter incomodado, tenho meus votos que sim. O diabo não jogaria uma tentação qualquer. Aquela era a terceira, depois de ter assuntado duas vezes. Ele precisava dar um tiro certo, e a prova de que acreditava ter mandado bem foi que ele deu uma de vilão de desenho animado. Não aguentou a certeza da vitória e estragou o próprio plano. Exigiu ser adorado e colocou em cheque a própria tentação elaborada. Cristo o rebate com termos que se referem à proposta da adoração. E o diabo é derrotado em uma melhor de três.
O que o diabo tentou foi a missão de Cristo. Investiu uma tentação contra a vocação. E o mesmo ele faz com tantos e tantas. Desvia-os do caminho, propõe uma outra rota, confunde a cabeça, isso tudo para garantir que a pessoa não irá realizar o belíssimo sonho que Deus sonhou para ela. Quantos padres caíram nessa armadilha e abandonaram a batina, quantos religiosos e religiosas desfizeram seus votos, quantos casais se divorciaram. Tudo porque tiveram a vocação tentada, e não estavam adorando a Deus para resistir.
Outra lição que essa tentação propõe é a de resolver tudo facilmente. Jesus temia o martírio da cruz, e o diabo lhe propõe o mundo todo sem dores. Tem muita gente que quer ganhar as conquistas sem sofrimentos. Acham que tem game shark para vida, que dá para pagar as dívidas digitando “klapaucius”, que dá para fazer um cheat para ser santo. Mas a vida não tem macetes, não se deve buscar as coisas achando que tudo vai ser moleza, que não vai requerer sacrifícios e ajuda de Deus.
E com pedir a ajuda de Deus, evita-se cair no erro do ativismo, onde trabalha-se acreditando que a mera atividade em demasia pode fazer as coisas, mas se não se reza e põe a confiança de que é Deus quem faz e nós só damos uma ajudinha que mais atrapalha do que auxilia, não se pode fazer algo bom de verdade.
Por fim, o messianismo terreno trata de uma glória meramente terrena. Jesus não cairia nessa, Ele não cairia em nenhuma, muito menos nessa, pois Jesus não tem vaidade. Ele já considerou todas as coisas debaixo do sol, Ele não quer ser glorificado como alguém que parece ser poderoso. Cristo não vive de aparências, Cristo não é postiço. Mas quantos não são arrastados pelo demônio a viver uma vida mesquinha de aparências, buscando apenas ser louvado pelas multidões.
Após ter sido derrotado, o diabo volta para o quinto dos infernos com o rabinho pontudo entre as pernas cascudas. Foi derrotado de uma forma humilhante e, refletindo na barca de Caronte que possibilitara a Jesus santificar a história e tornar ao homem possível vencer a tentação, como mais tarde começariam os cristãos a pedir no Pai-Nosso, o diabo sentira ódio de si mesmo, de ter sido tão estúpido a ponto de ter ousado tentar Deus, e no seu remorso, iria à mais profunda das fossas infernais, lamentar a sua existência.
V
Após o diabo ter saído derrotado daquela batalha entre o bem e o mal que, com toda certeza, está entre uma das passagens mais fascinantes dos santos evangelhos, Jesus mostrou-se vencedor. Alguém que resistiu às tentações porque jejuou e orou, porque sua vontade está sempre em conforme com a de Deus, e porque está convicto de sua missão.
O diabo segue geralmente o mesmo savoir-faire, surge como quem não quer nada. Até canta aquela musiquinha “Deixa o que dizem, o que pensam, o que falam, deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem? Eu não tô fazendo nada, e você também”. E pega a gente de bobeira. Ele não se apresentou a Jesus durante os quarenta dias de jejum, ele esperou o final desse “retiro”. Da mesma forma, o diabo não vai tentar durante o encontro da sua paróquia, quando tudo estiver lindo e maravilhoso, ele vai te tentar no ócio do seu quarto, alguns dias depois.
Quando o demônio se apresenta, ele não mostra logo os chifres, antes confunde o juízo humano. E tenta disfarçar o mal de bem, como se fosse pela causa mais nobre, com o próprio Jesus ele agiu assim: para provar que é Filho de Deus, para matar a fome, para ser amparado pelos anjos, para conquistar o mundo. Quando se trata de oferecer uma maça envenenada, o diabo se mostra mais habilidoso que a Rainha Má, e o homem mais ingênuo que a Branca de Neve.
Disfarçando de bem, ele vai tirando a vergonha de fazer algo errado. Sim, porque o mal envergonha. Mas não é por construção social, e sim porque o mal não é algo natural, que causa desconforto no ambiente. Entretanto, o tentador sabe as mais variadas formas de tirar esse entrave. E logo se acredita que é algo normal. “Todo mundo faz, porque eu também não posso?”. O curioso, é que essa mesma vergonha que ele tira, devolve com juros na hora de se confessar. O sujeito não tem um pingo de receio de agir como um animal na frente de todo mundo, mas se enche de timidez ao contar o feito para um sacerdote que está ali exatamente para ouvir esse tipo de coisa, com juramento de sigilo absoluto.
Depois de pegar a pessoa de bobeira, oferecer o mal e enfeitá-lo de bem, tirar a vergonha, o diabo já tem o sujeito na reta do pecado. Mas é o exercício da vontade própria, do livre arbítrio, que vai determinar se o passo para o pecado vai ser dado ou não. E é exatamente por isso que é possível se livrar. Pecar é uma questão de querer, é um ato de vontade.
Com a tentação de Cristo no deserto, todas as tentações pelas quais o homem pode passar tiveram seus caminhos sombrios iluminados por Cristo. Ao derrotar o diabo, nesse combate épico entre o bem e o mal, Cristo possibilitou que vencesse também cada homem e mulher disposto de boa vontade.
Além da ajuda de Jesus Cristo, é possível contar com outros aliados nessa batalha, pois fortes aliados contra o inimigo é bom ter aos montes, ainda que Cristo seja mais do que o suficiente, pois é Deus. E entre esses poderosos aliados, poder-se-ia contar com Maria Santíssima. Ela, como nova Eva, trata de acertar exatamente onde a primeira fracassou. Maria não dialoga com a tentação, Ela prefere a vontade de Deus, Ela não oferece o fruto do pecado para o homem, mas dá o fruto da Redenção, Jesus Cristo, Seu Filho. Além do mais, o diabo não suporta Nossa Senhora, ele até que tem um certo respeito por Cristo, pois ainda que despreze a Deus, tem medo do Todo-Poderoso, mas Maria fere toda a soberba satânica. O diabo odeia Maria com mais força do que todos s protestantes juntos.
E quando se trata de vencer tentações, temos aliados cuja experiência nessa área está gravada na mesma passagem da tentação de Cristo. “Por fim, o diabo O deixou, e os anjos se aproximaram para servi-Lo”. (Mateus IV, 11). Os Santos Anjos, por serem a antonímia dos demônios, são aliados muito úteis nesse combate. De um modo especial, o Anjo da Guarda de cada um, cuja missão dada por Deus é a de cuidar cada um de determinada pessoa. Ele é quem as livrará do maligno, se a pessoa pedir sua intercessão e sempre buscar ter presente à memória o fato de que seu Anjo da Guarda está presente o tempo todo, acompanhando e observando cada atitude dela.
O combate é difícil, o diabo é astuto e conta com um inimigo intramuros, já o homem conta com Deus (que segura o diabo afim de que o homem não seja tentado acima das suas forças), com a certeza de que Cristo derrotou o diabo para que ele também pudesse fazê-lo, com a intercessão de Nossa Senhora e do seu Santo Anjo da Guarda, e com a vontade firme de não cair em tentação, firmeza essa criada com oração e jejum, sobretudo no tempo quaresmal.
É preciso não se esquecer que Deus tira algo bom de tudo, até mesmo da tentação. Passar pela tentação, e mesmo assim continuar fiel à vontade divina é uma belíssima prova de amor, que muito agrada a Deus. Por isso, pede-se no Pai-Nosso que Ele não deixe “cair e tentação”, em momento algum pedindo que não aja tentação. Mas que ao ser tentado, saia o homem mais virtuoso, com sua fé testada no fogo e na água, como uma boa espada na forja, que passa das mais altas temperaturas para as mais baixas, a fim de que seu metal seja solidificado e não quebre na hora da batalha, permanecendo assim firme e intacto.