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A Morte de Tiradentes

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 8 de set. de 2016
  • 8 min de leitura

Atualizado: 17 de jul. de 2019



Ele era do tipo sonhador. Em seus sonhos, percorreu toda a terra do sonhar, mas nunca seus sonhos o tinham levado aquela casa. E lá estava ele, nosso sonhador. Entrou pela casa não perpassando pelos umbrais principais, mas pousando no terraço. Voar era aquilo que fazia de melhor em seus sonhos. Ah! Como aquilo lhe comprazia. Era ele o único que tinha esse dom. Abaixo dele, todos os homens olhavam para cima desejosos, invejosos e saudosos. Ele apenas voava, e o vento o conduzia.


Ali estava ele pousando naquele lugar onde os ventos o levaram. Desceu no terraço e adentrou a mansão por uma portinhola. Era um prédio muito grande com longas galerias, o centro era vazado e por ele desciam as longas escadarias entapetadas. Algumas escadas subiam e outras desciam. Algumas estavam ainda de ponta cabeça, ou davam para nenhum lugar. Algumas escadas não subiam nem desciam, mas davam na mesma galeria.


Não era apenas uma enorme mansão e um labirinto de escadas, era um museu. O museu do sonhar. O museu de todas as obras nunca consumadas, museu de obras apenas idealizadas, o museu do sonho.


O sonhador percorreu lentamente cada uma das galerias observando encantado tudo que podia. As primeiras galerias traziam esculturas portentosas, algumas eram representações de heróis e monstros de sua infância; outros, bustos de reis antigos; outros ainda eram imagens de deuses e santos tão gloriosos quanto esquecidos. Haviam também esculturas modernas, ou ao menos eram o que pareciam, pois não tinham forma alguma. Ele viu ali formatos geométricos que nunca sequer cogitara a existência, formas destorcidas que exprimiam dor e deleite. Viu também esqueletos de dinossauros, dragões e outras bestas colossais que não podia nem mesmo identificar, só estremecer ao imaginar que aquelas criaturas já povoaram os céus, os campos, as florestas e os oceanos.


Ele foi passando de galeria em galeria, de escada em escada, até chegar em um grande salão repleto de livros. Alguns estavam dispostos em estantes, outros empilhados no chão e outros ainda espalhados em cima de mesas. As capas eram as mais belas e variadas, os títulos eram cada vez mais criativos, os nomes de autores eram célebres ou desconhecidos.

Ele percorreu as estantes passando os dedos nas lombadas dos livros e balbuciando alguns títulos que lhe chamavam a atenção. “O Engenhoso Dom Quixote de la Mancha III”, de Miguel de Cervantes; “Assassinatos Reais”, de Edgard Allan Poe; “A Batalha do Condado”, de J. R. R. Tolkien; “Joana D’Arc”, de William Shakespeare; “A Pequena Rosa”, de Antoine Saint-Exupéry; “Arquivos Secretos do professor Jim Moriarty”, de Arthur Conan Doyle; “A Concepção de Jesus”, de Joseph Ratzinger; “A Morte de Percival”, de Heitor Megale; “O Funeral”, de Fiódor Dostoievski; “A Comicidade da Vida”, de G. K. Chesterton; “Alice no Museu dos Sonhos”, de Lewis Carrol; “O Pequeno Stuart”, de Charles Dickens; “O Senhor dos Elementos”, de Carlos Neiva; “Canibalismo no Inconsciente Coletivo”, de Carl Gustav Jung; “Eugênio Cubas”, de Machado de Assis; “Sonetos Eróticos”, de Luís de Camões; “Hexamerão”, de Giovanni Bocaccio; “V Macabeus”. Eram tantos livros, que mal podia contar.


Ele poderia ter ficado naquela estranha biblioteca para sempre, percorrendo todos seus infinitos corredores. Poderia ao menos folhear um daqueles livros. Pegou um exemplar que estava ao alcance de seu braço e pensou em abri-lo. Mas sentiu uma sensação de que algo o chamava a prosseguir a ronda pela mansão. Deixou pois o livro cair de entre os dedos e continuou caminhando em busca do que o atraia até ali.


A sala seguinte estava repleta de instrumentos e ferramentas que o sonhador desconhecia. Engenhocas e aparelhos cuja utilidade era impensável. Algumas coisas pareciam telescópios ou microscópios. Também tinham espécies de computadores. Algumas eram ferramentas pequenas, como alicates e bisturis. Haviam também alguns objetos que lembravam harpas, violas e pianos, talvez até instrumentos de sopro. Ele também ouvia ao fundo sons estranhos: canções, ritmos e sinfonias que nunca ouviu. Embora todas fossem tocadas ao mesmo tempo, conseguia distinguir claramente uma música da outra, e mais clara ainda era a certeza de que desconhecia todas aqueles sons.


Indo adiante, entrou no que parecia ser um planetário, pois estava repleto de fotos, vídeos, telescópios e abajures circulares. Ali ele via planetas e estrelas que em nada pareciam com o sistema solar. Eram sistemas muito diversificados, compostos de uma ou mais estrelas; como movimentações diferentes; uma gravidade particular e um brilho próprio. Talvez aquela que mais chamou sua atenção tenha sido a representação do conhecido sistema solar, mas com alguns planetas a mais. Tudo aquilo era curioso, mas ele ainda sentia uma força misteriosa conduzindo a continuar a descer as galerias.


Ele então continuou caminhando, e adentrou uma câmara repleta de lousas, quadros e papéis, e todos eles repletos de cálculos e equações. Eram dezenas de milhares de fórmulas, algumas completas e outras não, algumas com os conhecidos números árabes e outras com caracteres cujo valor lhe parecia desconhecido, algumas estavam certas e outras erradas. Haviam também vários desenhos geométricos, de formas tão estranhas quanto aquelas vistas algumas galerias atrás.


O sonhador continuou percorrendo os corredores, até que encontrou um grande umbral que dava para algo que parecia ser um zoológico. Ele estava para entrar, quando sentiu aquela força que o compelia a continuar descendo. Passou então apenas pela porta daquele complexo que, pelo que ele viu de relance, parecia ter animais incríveis e bizarros.

Percorrendo aqueles corredores aveludados, ele viu que haviam infinitas salas acima de sua cabeça. Estranhou o fato de que viera descendo desde o terraço e não vira aquelas câmaras. Procurou uma escada que o levasse para ali, mas assombrou-se em descobrir que só haviam escadas para descer. Era como se as escadas se mexessem, era como os andares trocassem de lugar.


Continuou portando descendo pelos corredores. Notou que nas paredes haviam quadros, afrescos, fotografias, desenhos e pinturas. Essas obras estavam distribuídas a cada cinco passos largos. Em geral, as paredes estavam cobertas por uma cortina vermelha de veludo, mas essa cortina se abria no intervalo dos cinco passos com uma luz que iluminava a obra na parede. O sonhador então diminuiu a velocidade das passadas, que haviam sido aumentadas desde a porta do zoológico, e se esforçou para admirar cada imagem na parede.


Algumas das obras eram retratos e pinturas de reis, papas, santos, guerreiros, paisagens e batalhas. Alguns quadros eram sérios e sombrios, outros traziam uma explosão de cores radiantes. Haviam também pinturas abstratas, trazendo formas e cores que o sonhador não conseguia identificar. Haviam algumas que eram apenas riscos e outras telas em branco.


Assim foi o sonhador, admirando cada obra até que, quando deu por si, estava diante do último lance de escadas, que davam para o pátio final. Ele não tinha lembrança de ter andado tanto, mas quando olhou para cima, viu-se no mesmo efeito que ocorrera antes. Haviam dezenas de corredores que não tinha percorrido, tal como a entrada para várias câmaras que não perpassou. Mais uma vez as escadas não permitiam que se retornasse, mas apenas que se descesse ao final daquele complexo de corredores e escadas. Descendo pois, admirou-se ao notar que as escadas terminavam em um pequenino pátio quadrado com alguns metros quadrados. Quando olhava para cima, via as longas escadas e corredores, mas não acreditava que o centro daqueles caminhos eram uma saleta tão pequena. Era como se tivesse percorrido por dentro de uma pirâmide invertida. Mas isso feria gravemente a lembrança que ele tinha de ter pousado em um edifício retangular. Desistiu do pensamento ao notar que havia um quadro peculiar na sua frente.


A obra lhe chamava atenção de uma forma quase mística, parecia até que era daquela tela que emanava toda aquela força que o conduzira até ali. Mas a surpresa não era apenas essa. Essa mesma obra estava replicada em três das quatro paredes da saleta. A obra era ao mesmo tempo confusa e indescritível. Haviam formas estranhas e realidades concretas em meio ao turbilhão de imagens. Era possível distinguir figuras como um cavalo, um rosto humano, uma concha, uma forca, uma estrela, e outras mais. Aquele quadro parecia aos olhos do sonhador a obra mais bela que tinha visto naquele estranho lugar. Não conseguia tirar os olhos daquela tela e queria conhecer tudo que pudesse daquela pintura.


Depois de uma longa conferida, percebeu que os três quadros eram idênticos. Até mesmo a moldura fixa na parede era igual. O sonhador sabia que era uma obra colada na parede porque tentou roubar um daqueles quadros. Ele estava desesperadamente apaixonado por aquela pintura e queria olhar para ela, reparar cada uma de suas figuras, até que a tela o sugasse para dentro, e ele enfim se perdesse.


Havia abaixo de cada uma daquelas obras uma plaquinha dourada com uma inscrição em preto. Ali estava o nome e o ano da criação do quadro. Os anos eram diferentes nos três quadros: 1671, 1891, 1930. O título da obra não mudava “A Morte de Tiradentes”.


O sonhador achou tudo aquilo muito curioso. A obra, com exceção da forca que podia se ver entre o turbilhão de imagens, não havia nem um objeto que fazia ao menos menção à morte do herói republicano. O nome parecia nada ter a ver com o quadro. E a primeira data era bem anterior ao nascimento da figura histórica. Aquilo tudo incomodou o sonhador. Incomodou tanto que ele despertou.


Ao acordar, o homem sentiu o estranho gosto da realidade. Sentia-se miseravelmente comum e normal. O dia que raiava e invadia seu quarto pelas brechas da janela era pateticamente entediante e sem mistérios. Era com pesar que ele acordava.


Caminhou esbarrando entre as mobílias em busca do banheiro. Escovou os dentes, barbeou-se e tomou banho. Já ia ele cumprindo todas as normas da higiene e da estética que estava habituado a fazer todos os dias antes de sair de casa, quando se lembrou do sonho que teve. Imediatamente, aquela paixão e fascínio pelo quadro da saleta retornou a sua mente e ao seu coração. Ele queria mais uma vez contemplar a pintura, mas ela não estava mais diante dos seus olhos.


Tomou então o homem o decidido projeto de pintar “A Morte de Tiradentes”, ele então teria o misterioso quadro finalmente para si. Podendo contemplá-lo o quanto quisesse. Então ele logo montou um estúdio em um cômodo da sua casa e pôs-se a tentar pintar o quadro dos seus sonhos. De início, parecia que seria fácil, mas no curto momento que levou entre tocar o pincel na aquarela e na tela em branco, notou que não lembrava ao certo a forma do quadro.


Então começou a imaginar a forma do quadro e como poderia concretizá-lo. Mas a medida em que sua imaginação tentava construir os fantasmas salvos em sua memória, notou que estava se esquecendo do quadro, e que a pintura aos poucos começava a se apagar da sua cabeça.


Aquilo logo começou a transtorná-lo, os sentimentos que criara por aquele quadro fizeram daquela tela a sua vida. Ele estava decidido a pintá-la, e precisava lembrar-se de como ela era. Mas na medida em que o tempo passava, ele se esquecia mais e mais do quadro e de todo o museu.


Então ele tentou sonhar novamente, retornar àquela casa, rever a pintura e pintá-la enquanto estivesse recente em sua memória. Mas por semanas tentou sonhar com aquele lugar e não conseguiu. Durante mais de um mês passou a maior parte do tempo dormindo, quando não sentia sono, tomava remédios. Seu intuito era voltar à saleta, mas não conseguia. Nenhum dos seus sonhos o levava até lá.


Desesperado, o homem buscou a ajuda de técnicas psicológicas, mas nenhuma regressão ou hipnose o levava ao complexo de galerias que percorrera. Todas as tentativas que tinha ao seu alcance falharam e ele não se lembrava nem mesmo da moldura do quadro. Entretanto, o nome daquela pintura não sumia mais de sua cabeça, e nem mesmo os sentimentos que tinha por ela. Passaram-se meses e o seu fascínio nem sequer enfraqueceu, antes disso, fortaleceu-se na medida em que esquecera dos detalhes do sonho. Desiludido, o homem não queria mais comer ou beber. Dormir e acordar sem ter visto o quadro era um desgosto. Qualquer imagem que contemplava com os olhos lhe dava ódio, pois essas se sobrepunham à imagem esquecida do quadro.


O homem se enforcou no seu quarto, logo após acordar pela manhã. Em uma pequena galeria do museu do sonhar, quatro obras idênticas estavam fixas nas suas quatro paredes. Em uma delas havia uma placa dourada com os dizeres “A Morte de Tiradentes, 2016”.

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