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Um olhar chestertoniano sobre a ficção

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 16 de jul. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de jul. de 2019


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Antes de se tornar o grande polemista e célebre apologeta, G. K. Chesterton era um poeta. Apesar de o mercado editorial católico no Brasil ter trazido à tona o Chesterton de Ortodoxia, Heresias e O que há de errado com o mundo, o Sr. Chesterton se dedicou muito mais à crítica literária e à composição de poemas e ficção. A poesia era tão presente na vida do jornalista, que ele costumava fazer poemas em dedicatórias de livros, cartões de natal e etc. Obviamente, um leitor mais atento pode notar que há uma forte carga poética em seus textos retóricos, o que os torna fascinantes, mas ao mesmo tempo complexos.


E é neste ponto que está a beleza do pensamento chestertoniano, a poesia não é só um discurso bobo que ora sim, ora não pode ser utilizado em sua escrita, mas ele permeia o sentimento poético em todas as suas obras, algo que faz dele um escritor único, mas o tornaria o pior aluno da classe em um cursinho preparatório para fazer a redação do Enem. Bom, na verdade GKC prece ter enfrentado esses problemas, pois seus colegas de classe se lembram dele como um garoto gordo sonolento que ficava no fundo da sala de aula, prestando pouca atenção nas aulas e, na maioria das vezes, desenhando.


Mas não é só a forma poética que tem importância, mesmo em textos apologéticos, na compreensão de Chesterton, mas também a sua compreensão de ficção. Para Chesterton, como ele bem coloca em O Homem Eterno, o homem é naturalmente um contador de estórias, um narrador, que no tédio de sua caverna, pintava narrativas épicas para divertir a noite dos demais companheiros de antro.


O que GKC quer dizer com tal disparate? Não só defender a sensibilidade do homem primitivo, mas demonstrar que a imaginação e a criatividade são naturais ao homem. Esse pensamento fica ainda mais bem exposto em seu texto “O Anjo Vermelho”, disponível na obra Tremendas Trivialidades (de onde o autor de Coraline, Neil Gaiman, pensou ter tirado a frase “Contos de fadas não são reais porque ensinam que dragões são reais, contos de fadas são reais porque ensinam que dragões podem ser derrotados”).Neste texto, Chesterton debate se os contos de fadas são nocivos ou não ás crianças, e o apologeta declara que “Se você mantiver os fantasmas e os duendes longes das crianças, elas o inventarão por si mesmas”.


Aqui, mais uma vez, está expresso o pensamento de G. K. Chesterton sobre a naturalidade com que a ficção surge na vida do homem, ele mal aprende a falar, andar e pensar e logo vê fadas dançando no jardim, gnomos debaixo das mesas e dragões sobrevoando os céus. Chesterton vê a ficção como parte do senso comum, também chamado, bom senso.


E o que é esse senso comum? É a noção da realidade que toda e qualquer pessoa tem da realidade enquanto tal. Ao contrário do que os espertalhões da academia dizem, o senso comum não é coisa de gente desinformada e mal educada, mas a aceitação da humanidade de um universo real que a saúda e diz “Olá, eu sou isso aqui e pronto”. E o que fazer diante da saudação desse universo? Aceitá-lo como ele é. É o que todo camponês ou pescador tem feito, ainda que existam filósofos que neguem o evidente em busca de uma elaboração filosófica mais complexa.


Mas talvez pareça contraditório imaginar fadas e dragões em um universo cuja realidade é tão óbvia, mas GKC tem aqui mais um dos seus paradoxos, pois ele acredita que os contos de fadas não nos apresentam os fantasmas, mas a possibilidade de derrotar os fantasmas, pois estes estão aí, quer queiramos ou não. O mundo é uma descoberta nova e apavorante, e no meio desse pavoroso descobrimento, pode haver o vulto sombrio. O autor conta que quando era pequeno, viu um vulto enorme que pensou ser um gigante, mas leu depois em um conto de fadas que um menino de sua idade tinha enganado um gigante da estatura do que ele pensou ter visto. O mal é uma realidade, o pecado é um fato, para usar termos chestertonianos, “tão positivo quanto batatas”, mas a ficção traz aquela áurea de luz, um herói para combatê-las.


Mas é importante notar que a ficção não é só uma válvula de escape para fugir de uma realidade insuportável, essa seria uma conclusão existencialista da qual a elaboração seria uma terrível tentação, uma tentação na qual caíram Lewis Carroll e C. S. Lewis. Não, Chesterton nota um princípio escapista, mas vê muito mais que isso.


Para ele, a função da ficção não é tanto tornar conhecidas as coisas estranhas e maravilhosas, mas tornar maravilhosas e estranhas as coisas conhecidas. GKC acredita que o senso comum toma a ficção como ferramenta para a redescoberta do mundo. Ele quer que nos tornemos como os bebês que se maravilham com o universo que contemplam. Segundo o autor, um homem ficaria espantado se soubesse que seu vizinho foi até a porta e ao abri-la, deparou-se com um dragão, mas um bebê ficaria surpreso se soubesse que um homem abriu uma porta. O universo saúda a humanidade com a sua existência e a humanidade deveria ficar maravilhada com esta saudação.


Assim, a ficção vem em defesa da realidade, pois traz de novo o maravilhoso para aquilo que acabou se tornando banal. Uma árvore não é nada demais se a considerarmos um vegetal de grande porte que serve de alimento a uma girafa, mas – ele comenta – é de ficar estupefato se se considerar uma prodigiosa onda de solo vivo que se expande até os céus. A fantasia traz de novo à árvore aquele maravilhar-se que os antigos gregos tinham quando viam as ninfas nelas ou os bretões ao verem fadas dançando em suas folhas.


Ou seja, a ficção não é só algo natural ao homem que reage ao mal, a ficção é algo que evidencia a vida, trazendo à tona detalhes a muito perdidos. “A Ilíada só é grande porque a vida toda é uma batalha, a Odisseia porque a vida toda é uma jornada, o Livro de Jó porque a vida toda é um enigma”. A ficção distancia o homem da realidade, para que ele a veja corretamente e esteja pronto para tratá-la da devida forma. Como declarou o próprio Chesterton: “A ficção é uma necessidade”.


Já formado na mente de Chesterton antes de que a sigla “GKC” fosse conhecida nos jornais, esse pensamento foi expresso em seu primeiro livro O Defensor já bem antes de surgir em Ortodoxia. Quando formula a sua “Ética da Terra dos Elfos”, ele apenas sintetizou algo que já tinha defendido a muito tempo nos jornais londrinos e que trazia consigo desde quando apenas lia contos de fadas.


Assim, ele vai formular em no seu livro mais célebre que “Os romances de hoje morrem depressa, enquanto que os velhos contos de fadas hão de durar para sempre. Os antigos contos de fadas têm como herói um ser humano normal: suas aventuras é que são impressionantes e impressionam-nos exatamente porque tratam de um ser normal. Mas, no moderno romance psicológico, o herói é anormal: centro não é real. [...] o conto de fadas aborda o que um homem são fará em um mundo louco: o romance realista, com toda a sua sobriedade, mostra-nos o que um indivíduo essencialmente lunático fará em um mundo estúpido”.


E este é exatamente o problema da ficção contemporânea (pois Chesterton é sempre muito atual), a ficção decidiu representar a loucura não mais do ambiente alheio ao protagonista, mas a própria loucura dele. Essa ficção não faz com que se maravilhe da saudação do universo, mas que se ache tudo patético e enfadonho. Os heróis de hoje são seres quebrados e não servem para maravilhar-se, mas para se ter pena ou, pior, se identificar e ter, enfim, um companheiro de charco para afundarem juntos.


Na visão chestertoniana, uma boa ficção se faz como se fazem as boas lendas. As lendas são feitas por todas as boas pessoas da tribo, a Literatura séria é feita pelo único membro da tribo que é meio louco, deprimido e não se relaciona bem com ninguém. Portanto, um bom escritor de ficção não tenta expressar a sua dor, mas demonstrar um mundo maravilhoso, seja insano, tenebroso ou ainda estonteante, mas o herói deve ser aquele que vence os desafios de forma sã e corajosa, ou a ficção não terá cumprido seu papel de apresentadora da saudação do universo.


Os escritores de ficção não precisam se preocupar em fazer personagens santos, pois os grandes não o são: Dom Quixote era senil, Dante um ressentido, Scrooge um avarento, dois dos três porquinhos eram néscios e Bilbo Bolseiro um covarde. Porém, um escritor não deve nunca fazer um herói quebrado, pois é como fazer uma bandeira rasgada, ele não simbolizará o que deve, mas apenas será sinal da ruína. Mas o fantasma da ruína é um sinal que já está aí e todos podem vê-lo, como um dragão no céu, o que se precisa é que haja um São Jorge, um Sigurd, um Perseu, um rei Arthur que possa empunhar armas contra ele.


Dom Quixote de la Mancha, por exemplo, é um herói aparentemente quebrado, suas leituras fantasiosas fizeram com que criasse um mundo louco onde moinhos de vento são como gigantes, mas na verdade o fidalgo é o único que se deixa maravilhar pelo mundo e vê-lo como ele é, vendo, por exemplo, em Sancho, um amigo fiel, em Aldonza, uma mulher cheia de dignidade e na vida, uma enorme aventura.


Não é possível dizer se o mundo moderno decaiu e a ficção o acompanhou ou se foi esta quem caiu por primeiro, levando consigo a civilização toda. O fato é que Chesterton viu, como um profeta, que a realidade pode ser restruturada ao se reestruturar a ficção. O que implica que junto com o número de filósofos e pensadores que se levantam para debater sobre a realidade, deve também surgir bons escritores de ficção, que criem histórias com rigor estético e muita originalidade, mas que deixem nas suas páginas, nas suas personagens, nos seus diálogos todo aquele bom senso de que G. K. Chesterton foi apóstolo e verdadeiro defensor.


Originalmente publicado no número 02 da Revista Newman Brasil em Maio de 2019.

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