Só os comediantes merecem nossa confiança
- Carlos Neiva
- 13 de nov. de 2021
- 5 min de leitura

Apesar da insanidade e psicopatia em que o seguinte trecho é recitado: “Qual é a graça? Imaginei que você perguntaria! É que eu pensei numa piada, só que você não entenderia”, esta frase do Rap do Coringa revela algo muito mais perturbador do que o humor excêntrico do Príncipe Palhaço do Crime, esta frase revela que há um quê de filosófico em uma piada. Por qual outro motivo você não a entenderia?
Senhora e senhores, muitos pensadores e escritores tentaram expressar suas ideias ao longo da história da humanidade. Entretanto, todos foram mais ou menos levados pela parcialidade da vida humana. Cada escritor apontou uma ideia, mas todas as ideias estavam embebidas de suas ideias pessoais. Por exemplo, Nietzsche declarou que Deus estava morto, mas o quanto isso não foi influenciado pelo ódio juvenil do pai pastor luterano repreensivo? Marx criticava o capitalismo, mas quanto desse ideal revolucionário não veio do fato de que o jovem não conseguiu uma instabilidade financeira e precisou ser sustentado por outros? Freud acreditava que todos temos traumas, mas não seria esse apenas um julgamento de um menino abusado pela babá?
O fato é que para além das ideologias, mesmo os mais comprometidos defensores da verdade podem se ver tomados pelo limitado campo de visão pessoal, faltando a ele uma compreensão do todo. O fato mais marcante e que colabora com isso são as obras de Aristófanes, o dramaturgo e comediante grego.
Enquanto Ésquilo e Sófocles estavam preocupados em trazer catarse ao povo grego por meio de suas tragédias, Aristófanes queria o riso. O comediante, em As Nuvens, se tornou uma das fontes primárias sobre a pessoa de Sócrates, o pai da Filosofia, batendo o martelo enfim no fato de que o mais sábio dos homens – segundo o oráculo Delfos – de fato existiu. Mas é aí que se chega ao quê filosófico da obra cômica de Aristófanes, além dele, Platão e Xenofonte escreveram sobre Sócrates.
Platão é o mais célebre discípulo de Sócrates, responsável por levar sua Filosofia em diante e desenvolver o pensamento filosófico no Ocidente, um verdadeiro gigante de ombros largos. Já Xenofonte era um historiador, mas também era aluno de Sócrates. Em sua obra, retratou o mundo grego, contribuindo para uma melhor compreensão nossa dessa época. Entretanto, nenhum dos dois discípulos retratou o mestre de forma mais acertada que Aristófanes. De fato, Platão nos trouxe as ideias socráticas e Xenofonte retratou o homem que mudou a história do Ocidente, mas nenhum deles ousou mostrar a verdade mais crua: que Sócrates era um chato.
Aprendemos em Filosofia que o método socrático era a ironia seguida da maiêutica, ou seja, o filósofo questionava as pessoas nas ruas sobre o significado real das coisas. É claro, em Filosofia isso fica lindo de dizer, afinal, o filósofo era um instigador, mas na realidade, o que podemos ver é que Sócrates era um chato tão inoportuno quanto um entregador de panfletos insistente. Foi isso que lhe valeu o apelido de “a mosca de Atenas”.
Esse fato leva ao seguinte ponto: um comediante não é, e está longe de ser, um lunático a parte de tudo, tal qual o Coringa. Um bom comediante é, e precisa ser, alguém extremamente ligado à realidade. Alguém que vê a vida como ela é, e o motivo para isto é simples: se ele não for assim, ninguém vai achar graça e vai ficar se questionando do que ri o piadista, tal como no trecho supracitado do rap.
Pensemos em um stand-up comedian que conta o fato de que toda criança é pervertida ou que todo político se veste mal, esses comentários vão gerar estranheza, não riso. O motivo é simples: um comediante faz humor em cima de uma “hipérbole”. Essa figura de linguagem é a chave do humor (ou a ironia, mas essa não deixa de ser um exagero dito de forma invertida).
A hipérbole está no fato de exagerar em um fato. Há casos de escândalo financeiro de políticos? Sim, então o comediante pode exagerar esse fato e dizer algo totalmente errado e impróprio como “todo político é ladrão”. Esse exagero, que repetido muitas vezes se torna um estereótipo, longe de ser um criador de estigmas sociais, é apenas um sinalizador de algo que já é tomado como verdade pela população, caso contrário não haveria riso. Em suma: os comediantes só são engraçados se exagerarem um fato conhecido como verdadeiro por todos.
Se isso é verdade, então o comediante é o mais realista dos homens, pois precisa estar atento o tempo todo à realidade, buscando aspectos reconhecidos por todos para amplificá-los (ou invertê-los, no caso da ironia). Eles são como detetives que andam atrás de pistas evidentes com suas lupas de aumento. Ora, ora… temos um Xeroque Rolmes aqui!
Basta darmos uma boa olhada na história da comédia e isso era confirmado: Hesíodo, Homero e Heródoto não nos dão um retrato do mundo grego melhor do que Aristófanes. Nenhum historiador ou pensador vai apresentar como era o machismo no mundo grego melhor do que o autor de Lisístrata: a greve do sexo. Em outras eras também era assim: quem apresenta melhor a sociologia medieval que não Geoffrey Chaucer? Quem expõe o clero e a nobreza portuguesa melhor que Gil Vicente? Quem apresenta a realidade nordestina mais rasgada que Ariano Suassuna?
Ao chegar aos nossos dias, o mesmo se dá: as imitações caricatas do Tom Cavalcante ou do Marcelo Adnet só são engraçadas porque os cacoetes exagerados realmente se parecem com o dos imitados; o humor politicamente incorreto e insano dos irmãos Piologo só faz rir porquê de fato existem pais que batem nos filhos porque o “Curitcha” perdeu; Nil Agra é engraçado porque diz o que todos pensamos mas não ousamos expressar em palavras; Afonso Padilha e Thiago Ventura são engraçados porque vemos os fatos narrados por eles como iguais aos nossos; e por aí vai.
Com isso, chegamos à conclusão de que o riso é um termômetro social deveras eficaz. Rimos do exagero, mas a matéria-prima desse exagero é a realidade. Não rimos de falsidades e enganos. E esse termômetro é bem testado nas mãos do bufão, que sabe observar bem os fatos reais para todos os públicos. É o poder do riso: talvez seja por isso que os medievais tinham medo da fórmula aristotélica da comédia.
Mas, depois de tudo que foi explorado, fica uma pergunta no ar, e essa pergunta não é “Qual é a graça?”, pois já sabemos que a graça é a realidade aumentada. A pergunta é: sobre o que fazem piada os nossos comediantes? O que eles contam que nos faz rir? Se o segredo do bufão é a realidade aumentada, então talvez os conteúdos das piadas dos nossos comediantes sejam o mais fiel retrato dos nossos dias – a verdade nua e crua, conhecida por todos, apesar de não comentada abertamente – um retrato tão verdadeiro que filósofo ou historiador algum poderia pintar.
Texto originalmente publicado no blog do Canal 7 em 11 de Fevereiro de 2021.
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