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Pode ou não pode?

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 25 de set. de 2019
  • 11 min de leitura

Uma abordagem panorâmica sobre a Ética e a Moral


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O homem é, como indica a definição científica homo sapiens, um ser que pensa, mas a coisa não para por aí, ele também é um homem que age. O homem, seus pensamentos e suas atitudes são objetos da Filosofia. O home é estudado pela antropologia, o seu pensamento pela gnosiologia e as suas atitudes pela ética. Sim, a Ética não é um conjunto de regras que dizem se você pode ou não namorar com sua secretaria, a Ética é um ramo da Filosofia que se ocupa do agir livre do homem direcionando-o para o bem.


Quando se fala de Ética (e hoje em dia muita gente fala de Ética), há três grandes correntes filosóficas que tem um grande peso na forma de se compreender essa ciência. São elas: o aristotelismo, o criticismo kantiano e o pragmatismo. Pode-se até dizer, sem querer relativizar, que são três éticas.


Aristóteles baseou toda sua filosofia no common sense, coisa que é bem diferente do que o brasileiro entende por senso comum. O brasileiro entende “senso comum” com o pensamento da massa, da gentalha, que não entende a coisa como ela de fato é, pois só intelectuais iluminados é que entendem bem as cosias pois tem uma visão desconstrucionista. Já para Aristóteles, todas as pessoas têm acesso à realidade e podem concluir as mesmas coisas, não importa se ela é ateniense ou não.


Explico, levante a sua cabeça e olhe o que há a sua volta. O que você vê? Uma mesa? Um abajur? Uma pessoa? Um ornitorrinco? Não importa, apenas fixe sua atenção nesse ser. Sim, isso que você está olhando existe, é real. Você não está imaginando coisas ou delirando. Esse ser que possui existência tem características muito importantes nele: ele possui uma substância que faz com que ele seja o que é e um conjunto de detalhes acidentais, acidentes, que fazem ele ser único. Olhe para essa mesa, há algo nela que faz com você saque logo de cara que se trata de uma mesa. Qualquer imbecil olha e chega à mesma conclusão: “Ahá! É uma mesa!”. É que existe nessa mesa uma substância de mesa que faz com que você a reconheça como uma igual a todas as outras mesas que você já viu. Igual, mas diferente, ela tem um comprimento específico, uma cor, está em um lugar geográfico determinado, foi feita em uma época, tem um dono e por aí vai. Essas características a separam das outras, fazendo-a única, apesar de a fábrica ter feito outras mil da mesma forma.


E o que isso tem a ver com Ética? Em Filosofia, é possível notar que a forma como você pensa determina a forma como você age. Se Aristóteles determina as coisas como são e todos são capazes de chegar à mesma conclusão, a Ética dele é pautada nisso. Para o Estagirita (apelido de Aristóteles, por ter nascido na cidade de Estagira), as coisas são boas em si ou más em si e qualquer um pode observar isso olhando para a coisa. Como agir diante disso? Um homem consegue ver as coisas como são e vai escolher sempre o bem. Diante de um mendigo que pede esmolas, o correto é dar uma ajuda ou espancá-lo? Aristóteles acredita que qualquer um pode ver que é preferível ajudar o pobrezinho.


Mas para ele, a coisa não para por aí, ele notou que se o homem faz algo bom várias vezes, esse algo vai se tornando natural a ele (quase que uma segunda substância) e ele vai se tornando um homem bom. Para Aristóteles, a Ética é baseada nas virtudes, isso é, um ato operativo bom, que em bom português quer dizer que toda vez que você faz um bem constantemente, aquilo se torna natural e você passa a fazer sem dificuldades. Alguém que ajudasse mendigos constantemente, seria alguém imbuído da virtude da generosidade.


Para esse discípulo de Platão, essa atitude objetivamente boa realizava o ser da pessoa, fazendo com que ela fosse feliz. Ética era, portanto, um caminho de felicidade, como ser uma pessoa realizada. Não é à toa que o seu mais famoso livro sobre Ética é dirigido ao seu filho, Ética a Nicômaco (350 a. C.). Aristóteles disse nessa obra que a virtude é um ato operativo bom e o vício é um ato operativo mal. E o macete para descobrir a virtude é olhar se ela está no meio, pois o vício é sempre uma falta ou um excesso. “Tudo em excesso faz mal” diria minha avó, que aliás era analfabeta e não tme ideia de quem é Aristóteles. Viu como o common sense funciona?


Por exemplo, entre o excesso do medo, que é a covardia, e a sua ausência completa, que é a temeridade, está a coragem, o bravo enfrentamento dos medos. Entre a falta de ajuda ao pobre mendigo do exemplo acima, que é a mesquinhez, e sair dando tudo que você tem de forma abusiva, que é a prodigalidade, está a generosidade. Entre a total falta de bom humor, que é a rudeza, e o excesso total, que é a bufonaria, está a espirituosidade. E por aí vai!


Como diria Rafael Stanziona de Morais, Doutor em Teologia Moral, o jovenzinho grego quando ia para a escola de Aristóteles, o Liceu, ter aulas de Ética dizia: “Oba! Hoje eu vou aprender como ser feliz!”. Esse pensamento aristotélico perdurou pela Idade Média e foi muito bem trabalhado por Santo Tomás de Aquino.


No início da era moderna, René Descartes lançou seu “cogito ergo sum” e abalou as estruturas da Filosofia. Para Descartes, não havia certeza de que você está vendo essa mesa, ou esse abajur, ou esse ornitorrinco aí na sua frente. Os sentidos enganam (já pensou ter visto algo e depois notou que foi impressão sua?) e a única certeza que se pode ter é do próprio pensamento.


Com isso, surgiram duas escolas científicas e filosóficas: o racionalismo e o empirismo. Ambas negavam a tradição metafísica do passado (essa coisa toda de ser e substância tratadas acima) e buscavam algo científico. Para os racionalistas, discípulos de Descartes, como Baruch Espinoza, o que há é a razão e não tem esse lance de mundo concreto aí fora. Espinoza chegava a dizer que tudo era um deus, única substância possível de existir. Resumindo, grosso modo eles negavam os acidentes, tudo é matemática. Já para os empiristas, como Hume, Locke e Bacon, não existem substâncias, mas só aquilo que é acessível aos sentidos. Aquela ideia dos cientistas de que só existe o que é possível atestar cientificamente em laboratório.


Diante dessa confusão filosófica, surge Kant com seu método crítico. Para ele, nem empiristas, nem racionalistas estão certos. O que você vê aí fora não é como é. A forma como você vê é uma construção da sua razão da realidade inacessível. É tipo como se você estivesse no cinema 3D: a imagem está borrada, não é possível ver, mas sua razão age como uns óculos 3D que faz com que você interprete a realidade. Essas lentes são os juízos sintéticos e analíticos e as doze categorias. Esse é, de uma forma parva, o argumento de sua obra Crítica da Razão Pura (1781).


Mas lembra que a forma que você pensa altera a forma como você age? Então, se você não tem o acesso as coisas como são, mas é a sua razão que dita, então há um problema aqui. Não é o ato de ajudar ou espancar o mendigo que vai ser bom ou mal em sim, mas o que a sua razão ditar para você. Kant aplica sua crítica à Ética e escreve Crítica da Razão Prática (1788) e depois Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1797).


Para Kant, há na razão de cada um os chamados “imperativos categóricos” e, além deles, os “imperativos hipotéticos” e os postulados da razão prática. Ou seja, existem coisas na sua razão que fazem você agir do jeito que age. Um dos postulados da razão é Deus. Para Kant, criado em ambiente protestante. Deus era um mecanismo da moral na razão dizendo o que pode ou não pode. Kant reduz Deus ao sujeito, à moralidade ao sujeito e nega a possibilidade de alcançar o ser objetivo fora de si.


Por fim, o último movimento filosófico que vai desenvolver uma Ética é o utilitarismo, de Bentham e Stuart Mill, cuja ideia está baseada no bem-estar. É bom, portanto, aquilo que gerar um bem-estar para o grupo coletivo. É exatamente essa Ética que circula na mentalidade global, a ideia de que aquilo que for bom para todo mundo, então é bom de fato. Seria bom para a sociedade a legalização do aborto? Então o aborto é útil e bom. Seria bom para todo mundo que a sexualidade fosse livre? Então o governo tem que gastar verbas com isso. E a lista de possíveis raciocínios aqui é longa.


Poderiam ainda ser citados o hedonismo (é bom o que em dá prazer) e o marxismo (é bom o que for bom para a revolução), mas não são ciências Éticas estruturadas, na verdade, passam por cima dela. Então já há um panorama da Ética completo, falta da Moral.


O que é Moral? A diferença de Ética e Moral é, diria Luís Felipe Pondé, a diferença de “table” e “mesa”. Moral é a tradução em latim da palavra grega Ética. Entretanto com o tempo, ao menos na Igreja, utilizou-se Moral para falar do estudo do agir do homem na Teologia e Ética para falar da Filosofia.


A Teologia surgiu como uma aplicação da doutrina revelada no esquema filosófico. A Igreja sabia que Cristo era Deus e Homem (assim revelava a Tradição e as Escrituras), mas não sabia explicar como. Então ela se apropriou do aparato Filosófico e o apoiou na Revelação, criando uma nova ciência. Os grandes nomes da Moral que merecem ser elencados são: Santo Tomás de Aquino, Santo Afonso Maria de Ligório e São João Paulo II.


De início, essa nova ciência estava ocupada em combater as heresias que motivaram os grandes concílios, é a Filosofia Patrística. O agir estava pautado no exemplo de Cristo e dos santos: o amor Ágape. Santo Agostinho tratou a questão do Mal e chegou até em falar de virtudes teologias, mas não há um desenvolvimento Moral ainda. Passada a Idade das Trevas, período em que os bárbaros depredaram Roma após a queda do Império. A Europa surge com uma nova vida. Cria-se um novo sistema econômico: o feudalismo; há a fundação dos reinos; surgem as ordens mendicantes (antes disso o domínio cultural era da Ordem Beneditina, que inclusive resguardou todos os livros em seus monastérios durante a Idade das Trevas, permitindo que chegassem até nós) e tem início a Escolástica.


Durante a Escolástica, Santo Alberto Magno começa a estudar o filósofo pagão favorito dos muçulmanos, Aristóteles. O exemplo do mestre passa para o aluno, Santo Tomás de Aquino, que vai resgatar a Ética aristotélica e desenvolver uma Moral tomista, pautada na busca pelas virtudes, auxiliado por Cristo.


Após um bom tempo depois de seu falecimento, Tomás de Aquino foi julgado pela Inquisição e seus escritos perderam a popularidade. Surge então Francisco Suarez com uma reinterpretação da teologia moral. Suarez se afirma tomista, mas há alguns traços totalmente anti-tomistas em sua obra, um deles é o voluntarismo. Explico: Tomás de Aquino não está longe de Aristóteles, para ele, dar uma esmola para o mendigo é bom e faz de você alguém generoso. Espancar o mendigo é algo muito ruim e Deus não poderia querer que fosse o fizesse. Parece óbvio, Jesus nunca ia me pedir para chutar um morador de rua, ele se amarra em pobres. Mas a afirmação é mais grave: se Deus não pode querer que eu faça o mal, então ele não é onipotente. Como eu poderia afirmar que Deus não quer algo? Para Tomás de Aquino, Deus é perfeito e nunca erra em seu agir, logo, não pode errar em querer algo mal, pois ele só acerta, só quer algo bom. Querer o mal não é acertar na ação e Deus sempre acerta. Para Suarez (e toda a escola voluntarista da qual veem também os nominalistas, dos quais Lutero recebeu formação e levou ao seu protestantismo), Deus quer o que quiser, pois pode tudo e aquilo que ele quer é que vai ser bom. Assim, fazer o bem é fazer o que Deus quer. Por que dar a esmola para o mendigo? Porque Deus quer. Por que não espancar o mendigo? Por que Deus não quer. Tudo depende da vontade (voluntas) de Deus.


Note bem que Suarez chegou aos imperativos de Kant quase dois séculos antes dele nascer. Como disse, a dedução vem do nominalismo que foi influenciado por Duns Escoto (responsável pela doutrina da Imaculada Conceição de Maria, que aconteceu “porque Deus quis”), mas chegou a níveis extremos, dos quais Martinho Lutero bebeu e levou para sua Reforma. Estou dizendo que Suarez é mal? Claro que não! Não acabei de mostrar uma cosia maravilhosa da doutrina voluntarista nos parênteses? Essa filosofia não é má, mas pode levar ao erro.


Outra boa coisa no voluntarismo foi a influência de Suarez em um homem que se debruçaria sobre a Teologia Moral de tal forma que viria a ser o santo padroeiro dos moralistas (estudantes de teologia moral): Santo Afonso Maria de Ligório.


Santo Afonso Maria de Ligório tem como adversários teológicos os jansenistas, os escrupulosos e os protestantes. Explico: os jansenistas são hereges que acreditam que a natureza humana foi ferida gravemente pelo pecado original, não sendo mais possível se reerguer. Eles não acreditam em virtude, pois a maldade do homem não tem remédio. (Mais tarde surgirá uma heresia oposta: o pelagianismo, que acredita que é apenas o homem e seu esforço quem conquista o céu). Os protestantes dividem-se em duas linhas: os luteranos que seguiam a máxima do fundador “Peca com força!”, pois o pecado era uma oportunidade de ser salvo pela graça (se não houver pecado, não há redenção) e os calvinistas que via um destino naqueles que Deus predestinou para a salvação, quem Deus escolheu para ser salvo, vai ser salvo e quem Deus não escolheu vai para o inferno, então não precisa de esforço. Os escrupulosos veem pecado em tudo e precisam de um equilíbrio.


Assim, Santo Afonso lança livros de cunho forte, mostrando que é preciso se esforçar seriamente e para ser santo. Com um estilo apaixonante e firme, escreve várias obras falando da necessidade de se esforçar para corresponder a graça. Um verdadeiro guerreiro da fé.


Passado o risco da heresia jansenista, a teologia moral foi esmorecendo e virou praticamente uma consulta ao manual. Aliás, todos os padres tinham seus manuaizinhos no confessionário que diziam quantas penitências cada pecado valia, fazendo um cálculo de “ave-marias” e “padres-nossos” o penitente devia rezar. E é exatamente aí que habita um mal que a Teologia Moral enfrenta: ela virou uma ciência do “pergunte ao padre se pode ou não pode”. Não há uma análise realista da coisa em si, como apontava Tomás de Aquino, há um pedido do imperativo categórico eclesial, um kantismo. O Aquinate ficaria indignado começa realidade, pois para ele, Moral é questão de bom senso, você sabe o que é o bem e age porque é bom. Gente virtuosa é gente com bom gosto, gente não virtuosa tem que afinar o seu gosto e não perguntar por normas. E não precisa ter contato com a Igreja para saber disso. Filosofias orientais estão carregadas de verdades morais e G. K. Chesterton apontou os contos de fadas como arcabouço da tradição ética do ocidente.


Hoje em dia, ao contrário, é muito comum ver em redes sociais, as pessoas indo perguntar aos padres e até a leigos tidos como referência se aquilo é pecado ou não, se pode ou não pode, se a Igreja curte ou deve ser organizado um boicote. Puro manualismo.


Em resposta a esse fato, São João Paulo II lançou uma encíclica intitulada Veritatis Splendor (1993) trazendo uma lufada de novo ar à Teologia Moral. Indo contra a manualística e reforçando a Lei Moral Natural (os dez mandamentos) no coração de todos os homens. Assim, o aborto é pecado não porque o Papa disse “não pode” ou porque a Bíblia diz, mas porque matar uma criança no seio de sua mãe é algo hediondo, e isso qualquer homem pode ver, pois não se trata de sua conduta subjetiva, mas do que é de fato. Matar bebê sé errado, transformar o ato procriativo e unitivo do sexo em diversão é errado, espancar mendigos é errado – qualquer pessoa pode ver.


A Ética e a Moral passaram por muita cosia, mas cabe a cada estudante sério compreender as alegrias e mazelas de cada movimento. São João Paulo II falou da necessidade de se compreender essa realidade novamente. Então peço encarecidamente que você nunca mais faça uma pergunta de “pode ou não pode” para alguém, mas que em oração pergunte a sua própria consciência. Por falar em consciência, há outro autor digno de menção nessa visão panorâmica da Moral, John Henry Newman, que via na consciência o seu encontro pessoal de você mesmo com Deus. Sua consciência é o seu santuário, onde padre ou manual nenhum pode entrar. Você pode anestesiá-la, mas nunca apagá-la. Seria bom se parasse um pouco para escutá-la.

Originalmente publicado na Revista Newman Brasil, número 03, em Julho de 2019.

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