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O dia e que a J. K. Rowling acertou na mosca

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 20 de set. de 2018
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de jul. de 2019



Há uma boa piada que ouvi várias vezes de um excelente professor universitário, é assim: Qual é a diferença entre Crepúsculo, Harry Potter e O Senhor dos Anéis? Simples: o primeiro foi escrito por uma dona de casa mórmon, o segundo por uma professora do primário aposentada e o terceiro por um catedrático de Oxford.


Quando falamos de literatura, estamos falando de literatura, ou seja, estamos falando de arte. Não me importa se você lê desde pequeno ou se toca o seu coraçãozinho juvenil. Arte tem que ter um princípio estético para ser arte. Arte não pode ser comercial para ser arte. Literatura é arte, livros comerciais não.


Aqui é preciso uma formação artística muito boa que infelizmente poucos têm, então não vou insistir na explicação e só vou pedir que trabalhem com uma ideia: para ser considerado Literatura, o autor deve ter se preocupado nem tanto com o que escreve, mas a forma como escreve, a beleza (a estética) está no jeito que ele compõe a narrativa, na beleza das palavras, nas rimas e aliterações, na profundidade das personagens, na descrição e composição do cenário, na forma que se dá a narração. Tudo isso você vê em O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, que compôs um universo fantástico, mas não deixou de ser literário. Porém, isso não é notável em autores mais comerciais como J. K. Rowling, Rick Riordan, Stephanie Meyer, Dan Brown e outros tantos. Eles fazem livros para vender, é o ganha pão deles, então fazem livros que envolvam, mas não tem preocupação estética, só se preocupam no que contam e não em como contam.


Não é errado fazer livro comercial, não é errado querer envolver o leitor com um livro raso – porém divertido – e não é errado ler esses livros. Eu mesmo sempre comento que li a primeira saga de Percy Jackson (cinco volumes e o Arquivo do Semideus) em uma semana, um livro por dia. Aquilo era maravilhoso, envolveu minha atenção e eu gosto muito do jeito fluído com que Riordan conta. É simples, mas cativa.


Logo, não é errado se você gostou de Harry Potter. O que é errado é você tachar de alta literatura só porque esse algo te cativou afetivamente. Não sou do tipo de sujeito que não gosta do universo Rowling por ele ser de bruxos, como se fosse algo satânico. Entendo quem o faz, pois ela realmente atribui à magia negra uma beleza que esta não tem. Mas não gosto de Harry Potter porque é “do capeta”, não gosto porque é ruim e pronto. Acho a escrita do Rick Riordan muito melhor e o protagonista muito mais cativante, que batalha mesmo e não fica recebendo tudo fácil da autora.


Tente analisar a escrita de Rowling, perceberá que é chata e simplória, mas tudo bem, ela não estava preocupada com isso, ela queria vender livros, e conseguiu, está podre de rica, mas seus fãs é que são imbecis, desses que chegam ao ponto de esperarem todos os dias por uma coruja, que pintam sua obra de alta literatura.


Porém, Rowling era uma fã entusiasta de C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, autores de quem ela macaqueou muita coisa para o seu universo fantástico. Ela ia acabar querendo fazer algo mais rebuscado, mais cedo ou mais tarde, e de fato o fez, e é aqui que eu acredito ser questão de justiça parabenizá-la, refiro-me ao livro Os Contos de Beedle, o Bardo, mas de um modo especial ao conto intitulado “O Conto dos Três Irmãos”, e é por causa deste que hoje eu tiro meu chapéu para a senhora Rowling.


O livro já começa em um insight de semiose e intertextualidade que faz muito pesquisadorzinho de universidade mijar nas calças: ela escreve um livro, passando-se por um personagem e insere esse livro dentro do universo dos seus livros. Quer dizer, Beedle foi um bardo que escrevia estórias para bruxos crianças e o seu livro Os Contos de Beedle foi lido pelos personagens da saga Harry Potter. E digo mais, esses contos estão cheios de uma moral e de uma filosofia bem trabalhada, com um rigor estético na escrita muito mais envolvente que a saga que a consagrou. É um livrinho fantástico e eu realmente acredito ser sua obra prima.


Entre os contos, o mais fabuloso é sem dúvidas o “O Conto dos Três Irmãos” e não apenas porque ele introduz as relíquias da Morte para a saga potteriana. Nem me importo com isso. O conto é bom por si só e pronto!


Para os desavisados, o conto narra que haviam três irmãos bruxos que passeavam por uma estrada. Tendo um rio muito perigoso como obstáculo, combinaram as varinhas e fizeram uma ponte para atravessar, o que enfureceu o Anjo da Morte, pois eles deveriam ter entrado no rio e se afogado, como todos que passavam ali. A Morte decidiu enganá-los e fingir surpresa, prometendo dar o que quisessem. O primeiro pediu para ser o bruxo mais poderoso e ela lhe deu a varinha mais poderosa de todas, o segundo quis o poder de ressuscitar os mortos (para humilhar a Morte) e o terceiro (o mais humilde) pediu para conseguir se ocultar da Morte.


Saindo dali, cada um seguiu seu caminho, mas a Morte os seguiu para cobrar suas vidas no momento certo. O primeiro matou um bruxo e se gabou de ter uma varinha que o fazia todo poderoso, o que o levou a ser roubado e assassinado. O segundo ressuscitou a sua amada, mas vendo-a sem vida, suicidou-se para se unir a ela. O terceiro envelheceu sem que a Morte o encontrasse.


Aqui está a genialidade do conto: três irmãos encontram a Morte. O mito dialoga conosco na sua forma mais clássica, o número três manifesta algo próprio dos contos de fada: três porquinhos, três fadas que trazem presentes, três desejos do gênio da lâmpada, três visitas de Rumplestiltskin e por aí vai. Nem nome esses irmãos têm, são o número três, místico e sedutor. Os três encontram ninguém mais, ninguém menos que a própria Morte, que tenta tapeá-los, bem no estilo do conto brasileiro do “O Laço do Diabo”.


O primeiro irmão quer poder, mas aprendeu como os césares que não é possível ter poder e mantê-lo, pois os homens se matam por poder; sua vaidade custou sua vida. O segundo irmão queria humilhar a Morte, mas foi humilhado por ela; quis ressuscitar a amada, mas vencer a morte é impossível! Sua prepotência foi maior do que a do seu irmão, e ele mesmo tirou a própria vida. O terceiro irmão foi humilde e decidiu não abusar da sorte que teve, quis fugir da Morte apenas: de fato ela o buscou, mas invisível ele não pôde ser encontrado por ela, mas quando velho ele passa a capa de invisibilidade ao primogênito e abraça a Morte, partindo como iguais.


Como um bom conto de fadas, a beleza está no ápice em que a história termina. O irmão humilde não busca fugir da Morte, mas evitá-la até a velhice, se tivesse ousado ser imortal, teria com certeza sido pego como presa, assim como seus dois irmãos. Assim, velho ele abraça a Morte, eles partem como iguais. Exaltavit humiles! Ao contrário dos dois irmãos que foram vencidos pela Morte, esse sabia que não podia com ela, e, na sua humildade, partiu com dignidade e nobreza, a Morte não o pegou, ele se entregou quando quis, ela foi vencida. “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente” (cf. Jo X, 18).


E como bom conto, esse escrito não só reflete sobre a humildade, mas convida a uma reflexão mais profunda. Saber tirar a capa de invisibilidade e morrer. Os existencialistas acreditam que estamos aqui, nesse mundo, jogados para a morte. Eu não penso assim, desconfio que o terceiro irmão também não, afinal, o conto narra que ele teve uma boa vida. Saber morrer não se trata de encarar a morte, o terceiro irmão fugiu dela por muitos anos. Mas de saber, quando é chegada a hora, abraçar a Morte como velhos amigos, pois a vida foi bem vivida.


Manuel Bandeira tem um poema chamado “Consoada”, e eu acredito que vale a pena compará-lo com o conto de Rowling:

Consoada Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: – Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar.

A chamada “Indesejada das gentes” é a Morte, e pode ser que quando ela vir (boa ou ruim) talvez haja medo, mas talvez o eu-lírico dê um alô para aquela que não ilude ninguém e não pode ser iludida. O eu-lírico declara ter tido um bom dia, uma boa vida, e pode vir a noite, a morte. É exatamente isso que diz o título do poema “consoada” é a última refeição do dia. O eu-lírico está nos últimos momentos da vida e vê que viveu bem, e a Morte pode vir, pois ele não deixou nada para depois, tudo está em ordem.


Saber viver bem é não temer a Morte, é olhar para ela de igual para igual, pois quem viveu bem não teme o seu fim, antes o abraça como baixar de cortinas de uma peça incrível que termina no seu grand finale com o aplauso da plateia.


O irmão humilde do conto de Rownling foi alguém que soube viver bem, pois foi humilde, e soube abraçar a sua hora com a dignidade de quem está em paz com sua consciência (coisa que o segundo irmão não soube fazer). Terminar a vida, passar o manto ao primogênito e abraçar a Morte como iguais é o desejo de todo homem, afinal, esses três passos seguem uma sequência causal: só quem vive bem tem uma capa para passar para o primogênito, e só quem deixou seu legado sabe partir com tranquilidade.


E se você, caríssimo leitor – e aqui deixo um pouco a análise para partir para uma reflexão – encontrasse a Morte no seu caminho, você estaria pronto para abraçá-la? Você teria medo ou daria um alô? Ela seria de aspecto terrível ou amigável? Isso tudo vai depender de como você viveu, do legado que você construiu e da sua consciência, ou melhor, de como você está vivendo, do legado que você está construindo e de como está sua consciência. Espero eu que esteja sendo um belo espetáculo, para que ao apagar da cortina e acender das luzes, possa a plateia dos santos e dos anjos te aplaudir e Cristo e Maria Santíssima te cumprimentarem “Bravo!”.


Talvez eu sofra de um complexo de Thanos, mas o tema da Morte é um dos temas mais incríveis de toda filosofia e literatura, acredito que até da espiritualidade (basta lembrar dos monges que se saudavam dizendo “memento mori”, isto é, “lembra-te de que vais morrer”, ao que o outro respondia “carpe diem”, isto é, “então aproveite o seu dia”). Todos devíamos aprender a morrer, aprendendo a viver, aproveitar o dia. E o que J. K. Rownling traz nesse conto é uma belíssima reflexão sobre a Morte, de uma forma tão poética quanto ela jamais escreveu, por isso venho humildemente, por meio desse texto, tirar para ela o meu chapéu (ou melhor, minha boina) e, aplaudindo, dizer: “Bravo!”.

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