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Já parou para admirar algo hoje?

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 9 de nov. de 2021
  • 6 min de leitura


Nos anos 2003, o polêmico Clodovil Hernandes foi entrevistado por Antônio Abujamra no programa “Provocações” da TV Cultura. O estilista cumprimentou o apresentador e perguntou como ele ia. Abujamra, que gosta de pagar de literata trágico, como se fosse um resquício da poesia simbólica, responde que vai mal. Já Clodovil retruca com uma pergunta: “Você sabe o que é um chato?”, e responde “A minha teoria de chato é ser aquele que você pergunta ‘como vai?’ e eles vão me contar. Ai, que inferno!”. De fato, Clodovil se mostra a voz da sensatez mais de uma vez. É insuportável quando alguém nos vem pesar o dia contando suas lamúrias quando perguntamos “Como vai?” apenas por educação.


É por isso que, inconscientemente dizemos que vamos bem, não importa como de fato estamos. O cumprimento é só um cumprimento, uma mera formalidade que fazemos sem ver. Na verdade, existem muitas coisas que fazemos sem ver. Passamos o dia todo, a semana toda, naquela correria típica da vida moderna e dizemos que nem vimos o tempo passar ou ainda que ele passou rápido. Não é o ano que passa rápido, é você que corre e não o nota passar em suas precisas oito mil setecentas e sessenta horas. Nossa vida se torna um cumprir de múltiplas atividades ao mesmo tempo, como que correndo contra um cronograma impossível. Essa realidade é bem ilustrada na crônica “Exigências da vida moderna”, atribuída a Luís Fernando Veríssimo, que circulava por e-mails há alguns anos atrás: “A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo! Por exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e escova os dentes. Chame os amigos junto com os seus pais. Beba o vinho, coma a maçã e a banana junto com a sua mulher… na sua cama. […] Agora tenho que ir. É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã, tenho que ir ao banheiro. E já que vou, levo um jornal”.


Mas qual é o resultado de tanta produtividade? De fazer tantas coisas ao mesmo tempo? De sermos a sociedade que mais realiza tarefas? Trabalhamos oito horas por dia, estudamos e nos entretemos, passamos aqui e ali, realizamos trabalhos na igreja e cultivamos algum hobbie. Com tanta coisa boa, deveríamos ser, no ápice de nossa tecnologia, a sociedade mais feliz de toda a história. Entretanto, ao invés disso, somos a mais frustrada. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o estresse atinge 90% da população mundial. Só no Brasil, 70% da população sofrem com esse mal, sendo que 30% chegam a ter níveis elevados de estresse. O homem medieval não era assim, nem o grego ou o romano, e olha que no tempo deles não havia tecnologia, nem banheiro dentro de casa.


O grande problema disso tudo é que hoje em dia fazemos e fazemos, mas não estamos naquilo que fazemos. De acordo com um estudo feito em Harvard, nossa mente está dispersa e distraída em nossos pensamentos durante praticamente 47% do tempo. Note bem, realizamos inúmeras atividades, mas no modo automático, e de forma repetitiva, já que todo dia é exatamente igual. Comemos rapidamente, geralmente assistindo TV, cada refeição é apenas um hábito; o trabalho passa de forma agoniante, apenas esperamos dar a hora de ir para casa relaxar no sofá vendo algum serviço de stream com alguma série que estamos maratonando; a semana é apenas uma espera pelo tão ansiado “sextou”; as conversas com as pessoas são apenas um barulho no qual nossa mente já está trabalhando o que dirá em seguida. Enfim, é como se todos fôssemos tripulantes amaldiçoados do navio Pérola Negra sob as ordens do Capitão Hector Barbossa, do filme Piratas do Caribe: a Maldição do Pérola Negra (2003), vivendo com a aparência de esqueletos imortais, sem sentir o gosto da comida, da bebida, do sexo ou de uma simples brisa marítima.


Essa forma de vida, tão corrida e sem gosto é que dá a sensação de vazio que traz doenças psicológicas, como o estresse, a ansiedade e até mesmo a depressão. E isso é comprovado por inúmeros estudiosos, que tratam esses casos fazendo seus pacientes viverem o momento presente, é o caso da técnica Mindfulness (Atenção Plena).


Sendo assim, fica a pergunta: você já prestou atenção nas coisas simples do seu dia a dia? Já notou o quanto é prazeroso o esticar de cada um dos seus músculos em uma espreguiçada pela manhã? Já notou o gostinho amargo com um toque de queimado que vem no café? Já percebeu que o formato do creme dental na sua escova não foi exatamente igual ao de ontem à noite? Já percebeu o como o céu está bonito? Você parou para respirar fundo esse ar fresco da manhã? Notou a roupa do seu colega de serviço? Percebeu aquela teia de aranha no canto da sala? Prestou bastante atenção no trabalho que desempenha? Sentiu o gosto independente de cada coisa que estava no seu prato no almoço? Reparou como sua esposa é linda? Deu um abraço forte nos seus filhos? Notou como crescem? Viu como o céu fica alaranjado no fim da tarde? Admirou a lua? Curtiu cada gota de água molhando seu corpo cansado e suado? Lavou a louça prestando atenção em cada item que esfregava? Sentiu o descansar de cada parte do seu corpo fadigado estirado na cama?


Essa desatenção nos detalhes mínimos de nosso cotidiano é que trazem os problemas, mas, ao contrário, a atenção e admiração por cada pequeno detalhe são o segredo de toda filosofia e poesia. Não é à toa que os versos de Adélia Prado, em seu poema “Momento” descrevem: “Enquanto eu fiquei alegre, / permaneceram um bule azul com um descascado no bico, / uma garrafa de pimenta pelo meio, / um latido e um céu limpidíssimo / com recém-feitas estrelas”. Releia esses versos em voz alta e veja como a poetisa desfrutou dos seus itens de cozinha velhos, do latido de um cachorro lá fora e das estrelas do céu recém-escurecido. Leia mais uma vez e outra, sem pressa, até que se delicie você também.


Os grandes poetas são aqueles que simplesmente observam e dão a devida importância às coisas pequenas que todo mundo ignora. Os filósofos não são diferentes, são aqueles que investigam até as últimas causas dessas coisas triviais. É claro, refiro-me aos bons filósofos, porque os maus filósofos são aqueles que estão fechados em seu mundinho, na sua própria teoria, e só sabem ver isso. Não admiram um trabalhador assoviando rua abaixo, mas veem um proletário que precisa se revolucionar contra o sistema; não veem a beleza de uma criança soltando pipa, mas as políticas urbanas e outras coisas chatas; não sentem o gosto de uma boa cerveja, mas se embebedam em suas teorias mentais.


O segredo para tudo talvez seja aprender com as únicas pessoas entre nós que não têm estresse, ansiedade ou depressão: os bebês. Os bebês são as melhores pessoas do mundo e temos que aprender com eles. É como afirma o filósofo britânico G. K. Chesterton: “As escolas e sábios mais insondáveis nunca alcançaram a gravidade que existe os olhos de um bebê de três meses de idade. É a gravidade do espanto perante o universo, e o espanto perante o universo não é misticismo, mas um transcendente bom senso”. De fato, eu tenho amigos que são papais e mamães e observo com atenção os seus filhinhos de poucos meses de idade. Eles, mesmo tão novinhos e indefesos, olham tudo ao seu redor com curiosidade, espanto e maravilhamento. Para eles, esse mundo é uma novidade e eles estão conhecendo tudo. Tudo é interessante, tudo é incrível, tudo é belo. É essa gravidade que existe nos olhos dos bebês e da qual Chesterton fala.


Se tivéssemos essa mesma gravidade, poderíamos ver as coisas de outro modo, os dias seriam únicos e a vida fascinante, ao invés de estressante. Poderíamos admirar a bela natureza a nossa volta, fazer um trabalho primoroso, deliciarmo-nos ao comer e prestar bastante atenção na pessoa que nos fala. Sem dúvidas seria tudo muito melhor.


Mas como colocar isso em prática? Talvez seria bacana acrescentarmos algumas mudanças em nossa rotina, exatamente para sair da rotina. Pequenas mudanças como mudar a rota para o trabalho, adquirir um novo costume ou mudar a mobília de lugar. Serve como inspiração o poema “Mude”, de Edson Marques, sobretudo os versos: “Sente-se em outra cadeira, / no outro lado da mesa. / Mais tarde, mude de mesa. Quando sair, / procure andar pelo outro lado da rua. / Depois, mude de caminho, / ande por outras ruas, / calmamente, / observando com atenção / os lugares por onde / você passa. Tome outros ônibus. / Mude por uns tempos o estilo das roupas. / Dê os seus sapatos velhos. /Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira / para passear livremente na praia, / ou no parque, /e ouvir o canto dos passarinhos”.


Adotando essas medidas, com certeza você irá se livrar da angústia que consome as pessoas na modernidade. É claro, não há fórmulas para ser 100% feliz, mas como diria Clodovil na mesma entrevista citada ao responder se era feliz: “Nem feliz nem infeliz. Eu tenho momentos de felicidade e momentos de infelicidade”. E que bom seria se permitir sentir cada emoção.




Texto originalmente publicado no blog do Canal 7 em 11 de Dezembro de 2020.

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