top of page

Ideologia de Pátria: um ensaio de ironia

  • Foto do escritor: Carlos Neiva
    Carlos Neiva
  • 17 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura

Publicado originalmente em 2015.


Venho por meio desse manifesto, tratar de um assunto de extrema importância. Ainda que o mundo todo não o tenho notado, eu o fiz e venho agora lutar para que todos possam perceber a terrível opressão pela qual viemos passando. Não o fiz por me considerar mais iluminado do que todos, mas sim, aquele que mais sofre com a terrível injustiça que é a imposição cultural de nacionalidade.


Afirmo que essa revelação me veio no instante em que vários intelectuais e pensadores contemporâneos expunham em seus trabalhos acadêmicos, aulas nos diversos níveis de ensino, publicações em redes sociais e palestras em eventos notórios, sobre a cruel imposição que a sociedade faz sobre as pessoas desde a mais tenra idade acerca do gênero a ser escolhido de acordo com uma condição biológica que a mesma não escolheu, mas antes, nasceu condenada a ela.


Saí de uma dessas palestras em prantos. Estava revoltadíssimo com tamanha injustiça. Como era possível que alguém pudesse fazer uma coisa tão cruel contra a felicidade de alguém? Onde estava a liberdade de escolha? Como podiam obrigar um menino a agir como menina só por que esse nascera com uma vagina? Ora, acaso o que faz um homem ou uma mulher é um mísero cromossomo? Por que condições meramente culturais moldavam o destino de alguém que não pode escolher por nada daquilo?


Todo aquele mundo descoberto fora um grande choque para mim. Não apenas pelo sentimento de piedade dos pobres desgraçados que eram oprimidos pela sociedade machista, mas porque me senti enfim compreendido e a partir dessa teoria pude criar a minha: a teoria de pátria. Digo “teoria”, porque esse é nome correto que se deve dar a um estudo científico como esse. O termo “ideologia” foi utilizado pelos conservadores para nos difamar com um termo cunhado por Karl Marx. Ora, os ideólogos são eles, que se pautam em um livro milenar, nós pelo contrário, utilizamos de muitos estudos feitos pelos mais diversos e renomados cientistas sociais, mas os machistas não perderão jamais sua mentalidade medieval e anticientífica.


Ora a teoria de gênero nos mostra que ninguém nasce homem ou mulher, nascemos neutros. A separação dicotômica é apenas uma questão de disputa e poder, onde opressores põem-se acima de oprimidos. Em minha teoria, também acredito que ninguém possa nascer com uma nacionalidade pré-estabelecida, nascemos todos terráqueos. Divisão territorial foi algo inventado! A separação da terra em fronteiras imaginárias foi algo meramente político e histórico, envolto em guerras e armações. Não existe nada que separe a Argentina do Brasil, exceto uma linha imaginária que é colocada na cabeça das crianças que tem a infelicidade de estudar em escolas doutrinadoras cheias de mapas mundi e atlas escolares. Da mesma forma, nada separa territórios que se distanciam pelas águas. Ora, se a Guiana faz parte da França mesmo havendo um oceano inteiro separando essas nações. Por que não posso dizer que a Nova Zelândia não está ligada ao Japão?


Barreiras imaginárias e políticas separam pessoas de viverem da forma como querem. Eu nasci nessas terras que chamam de Brasil, mas nunca me perguntaram qual nacionalidade eu queria escolher. Simplesmente me submeteram sobre a cidadania brasileira, sem se importar com meus gostos e afetos. Nunca perguntaram em qual terra eu queria ter nascido. Nunca tive o direito de escolha.


Da mesma forma que os pais ensinam seus filhos meninos a gostarem de carrinhos e bolas de futebol, mas não bonecas ou panelinhas, e depois na adolescência forçam-nos a se interessar por garotas e não garotos ou animais ou cadáveres. Na minha infância, ensinaram-me a gostar de comer frango com pequi, a ouvir sertanejo, gostar de acampar, assistir filmes nacionais ou ao menos dublados. Enfim, educaram-me como um goiano brasileiro, nem mesmo foi como um carioca, gaúcho ou baiano, mas prefeririam segregar-me ainda mais a fim de me oprimir.


Nacionalistas! É isso que todos são. Mas peço uma nova interpretação para essa palavra. Até porque, a língua é a primeira a ser relativa, a se plasmar e se reinterpretar de uma forma livre. Não é à toa que o estudo dos gêneros começou na língua, a partir do estudo de gêneros textuais. Mas não percamos o foco. Quando me refiro a nacionalista, não quero falar dos bons valores de alguém que ama sua terra e sua cultura. Não, esse era o sentido comum. As pessoas dão uma boa conotação para essa palavra, fazem algo mau parecer bom. Nacionalista é aquela pessoa que vive apegada a um conceito antiquado de nação e que deseja impor a sua visão de nacionalidade aos demais. Ou seja, os nacionalistas são pessoas que se encaixam no mesmo grupo dos racistas e machistas: são todos opressores e preconceituosos.


Acontece, que mesmo com essa educação patriótica que recebi, sempre gostei mais do clima frio, aprecio um bom chá preto com mel e leite, gosto de ouvir uma boa música, apreciar uma boa ópera, distrair-me vendo alguma série da BBC, amo ouvir a história do império britânico, adoro sua literatura e os grandes nomes que a compõem, nunca saio sem meu guarda-chuva, detesto todos os franceses, divirto-me ao saber das fofocas em volta da família real, prefiro gatos a cães… enfim, sou um inglês completo. Mesmo assim, a sociedade insiste em me oprimir dentro de uma construção social sem se importar com minha felicidade.

Uma vez que não há nenhuma barreira física que separe nações, tudo não passa de uma construção social, o que define sobre qual território e governo a pessoa deve se resguardar? God save the Queen! Sinto-me sob seu governo e sua proteção. Mas por que, embora eu sinta, não podem me aceitar como inglês? Por que um conceito fictício pensado por uma maioria pode dizer quem sou, mesmo se eu discordar?


Sinto-me extremamente envergonhado quando encontro um estrangeiro, e esse pergunta por minha nacionalidade. Sofro muitíssimo quando o mesmo insiste e me pede para sambar. E maior seria minha humilhação se, ao visitar minha nação, tivesse que passar pela alfândega britânica como um estrangeiro.


Já imaginou como seria se os seus pais não te reconhecessem e o tratassem como um estranho? Assim me sentiria eu se chegasse na minha terra e me tratassem como estrangeiro por causa dessa divisão. Apenas um desvio da nau de Américo Vespúcio e eu teria minha cidadania reconhecida, mas por um simples trajeto feito há quinhentos anos, sou visto como estranho pelos meus. Se eu tentasse contar a verdade sobre a minha nacionalidade, de estrangeiro passaria a imigrante louco.


Se eu pudesse escolher, teria nascido na pacata cidade de Norfolk. Estaria nesse exato momento tomando um bom chá com algumas bolachas. Provavelmente, estaria sentado em uma mesinha próxima a lareira, lendo um jornal local que contaria as últimas fofocas sobre a família real ou sobre algum astro do rock, meu gato british shorthairestaria roçando na minha perna esquerda e belas flores cresceriam no canteiro abaixo da janela mais próxima. Eu seria feliz! Entretanto, aqui estou: uma barreira invisível me separa da oportunidade de viver na minha terra, o clima é quente, as celebridades são entediantes e o chá é fraco.


Por meio desse manifesto, exijo que, após conseguida a vitória da teoria de gênero, a teoria de pátria também possa receber seu lugar. E que eu receba do governo a cidadania de Norfolk e a possibilidade de mudar para minha pátria. Pois esses são os meus direitos, estão ligados com a minha felicidade e a forma como eu me sinto. Ninguém pode me negar isso! Afinal, eu sou um inglês preso em um corpo brasileiro.

Comments


Ragnarok.jpg

Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.

bottom of page