Elementos comuns dos cavaleiros medievais das novelas de cavalaria na figura moderna de Batman
- Carlos Neiva
- 23 de nov. de 2021
- 8 min de leitura

As novelas de cavalaria foram sem dúvida o tipo de ficção com maior difusão e leitura no mundo medieval. Personagens marcantes como o Rei Arthur “se multiplicaram às centenas, nos mais diversos idiomas, por meio de traduções e versões surgidas por toda a Europa até o oriente”. (SILVA, 2012, p. 85). Atualmente, a literatura conta com milhares de exemplares e adaptações modernas desse tipo de escrita. Há vários tipos de obras que referenciam ao romance de cavalaria e a figura do cavaleiro medieval está muito bem construída no imaginário popular, ou melhor, no inconsciente coletivo (JUNG, 2000).
Do outro lado, temos a figura dos super-heróis das revistas em quadrinhos que surgiram no final da década de 30, por meio da globalização, tornaram-se febre mundial. Da mesma forma que com os cavaleiros, há diversas adaptações para o cinema e inúmeras obras de história em quadrinhos (e graphic novels) que trabalham o mito de seres incríveis fantasiados. Como no primeiro caso, essa figura moderna também já reina no inconsciente coletivo.
Porém, essas duas figuras lendárias que reinam no inconsciente popular (o cavaleiro e o super-herói) possuem uma série de semelhanças que chamaremos de arquétipos, conceito do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) que traremos para a literatura, que pode ser entendido como “um correlato indispensável da idéia do inconsciente coletivo, indica[ndo] a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as ‘motivos’ ou ‘temas’”. (idem).
Entre essa correlação e semelhança de arquétipos, podemos destacar de um modo mais claro a figura de Batman, super-herói que possui todos os principais arquétipos de um cavaleiro andante. Sendo assim, será estabelecida uma comparação de determinadas obras, da novela de cavalaria e do próprio Batman, a fim de se perceber os vários arquétipos que fazem a intertextualidade (SAMOYAULT, 2008) do super-herói e seu universo.
Já foi percebido por alguns roteiristas responsáveis pelo homem-morcego essa relação intertextual para com as novelas de cavalaria, a mais clara é a Batman: Cálice (2004), onde o super-herói fica encarregado de proteger o Santo Graal. Algumas antonomásias também demonstram essa relação, as mais comuns são “cavaleiro das trevas” e “cruzado encapuzado”.
O artigo será dividido em três capítulos, o primeiro tratará dos objetos comuns, o segundo, dos coadjuvantes e o terceiro da ideologia.
Objetos comuns
Ao se pedir para qualquer indivíduo que se descreva um cavaleiro medieval, alguns objetos constarão em todas as descrições, são eles a armadura, a espada, o escudo e o cavalo. Esses objetos serão apontados nos romances de cavalaria e comparados com elementos semelhantes do Batman.
A armadura
Como imaginar um cavaleiro sem armadura? Embora os mais ricos tivessem armadura de aço, enquanto os menos ricos tinham de couro, essa vestimenta era fundamental entre a cavalaria. Além de proteger, também servia para identificar, como no caso dos cavaleiros andantes:
E naquele momento em que os cavaleiros vieram, estava o rei encostado a uma janela em seu palácio. E quando os viu as-sim armados [isto é, trajados de uma armadura] vir e sem companhia, viu que eram cavaleiros andantes, e ficou muito alegra com eles. (MEGALE, 1996, p. 32-33).
Também Dom Quixote, personagem da maior sátira às novelas de cavalaria, sabia da importância da armadura, e ao se fazer cavaleiro, tratou de trajar uma.
E a primeira coisa que fez foi limpar umas armas que tinham sido dos seus bisavós, e que, desgastadas de ferrugem, jaziam para um canto esquecidas havia séculos. Limpou-as e concertou-as o melhor que pôde; porém viu que tinham uma grande falta, que era não terem celada de encaixe, senão só morrião simples; a isto porém remediou a sua habilidade: arranjou com papelões uma espécie de meia celada, que encaixava com o morrião, representando celada inteira. (CERVANTES, 2007, p. 48).
Já em Batman: o cavaleiro das trevas, vemos a mesma importância e utilidade prática aplicada ao seu disfarce. Que o protege de uma bala que poderia ter sido letal.

Batman: o cavaleiro das trevas, n. 01. p. 45, 1997.
Além de caracterizar o herói e protegê-lo, a armadura também funciona como um voto. Ao vestir a armadura, já não é mais Bruce Wayne (alter-ego de Batman) que está ali, mas um homem empenhado na função de proteger Gotham City. Vemos a vestimenta como símbolo de um voto também nas novelas de cavalaria.
Então chegou-se a ele mais que antes e pôs a mão nele muito devagar para despertá-lo; mas, quando sentiu a estamenha que o cavaleiro vestia, [...] ficou espantada que disse logo:
_ Ai, infeliz, que é isto que vejo? Não é ele dos cavaleiros andantes, que dizem que são namorados, mas daqueles [cavaleiros] cuja vida e alegria está sempre em penitência. (MEGALE, 1996, p. 37).
Como Galaaz se vestia de estamenha como penitência, a máscara de Batman, faz com que ele viva uma vida de amargura fazendo justiça com as próprias mãos, embora sem ela, poderia viver uma vida excêntrica de milionário.

Injustiça: deuses entre nós, n. 17. p. 22, 2013.
Armas
Se o cavaleiro é um guerreiro, é preciso armas pra o combate. Os cavaleiros medievais estão munidos de suas espadas na bainha, Batman, por sua vez possui um cinturão com armas mais modernas do que espadas, mas não há presença de armas de fogo.

Batman: Cálice. p. 85, 2004.
Como Batman faz uso de suas lâminas em forma de morcegos, nas novelas de cavalaria, há uma constante referência ao uso de espadas, batalhas semelhantes a do texto 03, que como foi dito anteriormente, é uma referência ao fato de Batman possuir arquétipos de um cavaleiro medieval. “Então quiseram eles atacar logo Boorz e quiseram prendê-lo, mas não puderam, porque ele se defendeu tão maravilhosamente com sua espada que lhes cortava as cabeças e os braços e derrubava uns para cá e outros para lá”. (MEGALE, 1996, p. 41).
Cavalo
Embora em Batman: o cavaleiro das trevas, o herói cavalgue pelas ruas de Gothan City, não é essa montaria de praxe. Batman, utiliza do “bat-móvel” para se locomover.

Batman: o cavaleiro das trevas, n. 2. p. 18, 1997.
É claro que o bat-móvel não é um cavalo, nem lembra um, mas, por se tratar de um meio de transporte moderno, esse veículo faz uma alusão (SAMOYAULT, 2008, p. 61) a um cavalo, meio de transporte comum da idade média. “Senhor, se vos apraz, fazei-nos dar nossos cavalos, porque temos tanto que fazer que não podemos aqui ficar”. (MEGALE, 1996, p. 49).
Escudo ou estandarte
O escudo era uma ferramenta de defesa, mas também tinha a função de exibir as insígnias, brasão ou estandarte do cavaleiro, a fim de identificá-lo e mostrar seus feitos. Dom Quixote carregava um escudo branco, mas estava a procura de sua marca.
Mas, apenas se viu no campo, quando o assaltou um terrível pensamento, e tal, que por pouco o não fez desistir da começada empresa: lembrou-lhe não ter sido ainda armado cavalheiro, e que, segundo a lei da cavalaria, não podia nem devia tomar armas com algum cavaleiro; e ainda que as tomara, havia de levá-las brancas [ou seja, as que não tinham nenhuma divisa ou insígnia, próprias de cavaleiro que ainda não realizou alguma proeza], como cavaleiro donzel, sem empresa no escudo enquanto por seu esforço a não ganhasse. (CERVANTES, 2007, p. 51).
Como símbolo, os escudos possuem tamanha importância, que serviam inclusive como marca de pertença, como no caso dos escudos que marcavam as tendas encontradas por Leonel. “Quando chegou perto da torre no meio do prado, viu duas tendas armadas muito formosas e muito ricas, e diante de cada uma estavam dois escudos e duas lanças. Assim que Leonel viu os escudos, foi para lá”. (MEGALE, 1996, p. 61).
No caso de Batman, não há um escudo, da mesma forma que não há uma espada, mas há uma insígnia, um símbolo que conta seus feitos. Em algumas histórias em quadrinhos (HQ’s), esse símbolo chega a ter um destaque especial. Como o enfoque no emblema peitoral do herói, na arte de Brian Bolland.

Batman: a piada mortal. p. 21, 1999.
Coadjuvantes
Batman é o protagonista, mas suas histórias estão cheias de personagens coadjuvantes fascinantes: Alfred, Gordon, Dick, Superman, Bárbara e Talia são apenas alguns exemplos.
Escudeiro
Os cavaleiros estavam sempre acompanhados de fiéis escudeiros, ajudantes nas batalhas que colaboravam na carga dos equipamentos. Nas HQ’s de Batman, há a presença de Robin. Ainda que vários garotos (em Batman: o cavaleiro das trevas é uma menina) tenham assumido o cargo de Robin, a figura simbólica do Garoto-Prodígio sempre auxilia Batman em suas batalhas.

Batman: o cavaleiro das trevas, n. 3. p. 37, 1997.
Como um sujeito que faz as vezes de escudeiro, há a figura de Sancho Pança que Dom Quixote quer junto de si para auxiliá-lo. Essas figuras de auxiliares estão constantemente atreladas ao arquétipo do escudeiro, uma vez que só cumprem a função de coadjuvante, nunca interferindo direto na batalha, que é papel do cavaleiro.
Neste meio tempo, solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, [...] tanto em suma lhe disse, tanto lhe martelou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. (CERVANTES, 2007, p. 95).
Donzela amada
Com um pouco de romantismo, a presença das donzelas para quem os cavaleiros fazem seus louvores, está constantemente marcada. Na Demanda do Santo Graal há diversas personagens femininas. Algumas delas são as amadas dos protagonistas, como Genevra para com Lancelote, outras são demônios traiçoeiros, como a mulher da tenda encontrada por Percival, e em outros casos damas que o cavaleiro jamais terá, como a filha do rei Brutos para com Galaaz.
Entre todas as personagens femininas que marcam as histórias de Batman, é Talia Al Ghul uma mistura de todos os tipos. Uma mulher que Batman ama verdadeiramente, mas não pode tê-la pois é filha de seu inimigo Ra’s Al Ghul, o demônio.

Batman: Cálice. p. 88, 2004.
A Ideologia
Como os cavaleiros andantes possuem suas regras e seus votos, Batman mantém suas promessas que fizera no dia em que se tornou super-herói. Ambos defendem a justiça com as próprias mãos, mas ainda sim possuem suas regras e sua moral. Por exemplo, Galaaz possuía voto de castidade e fazia penitências “porque sem estamenha nunca ele estava nem de noite nem de dia”. (MEGALE, 1996, p. 37). Já Batman, possuí um juramento de nunca matar, por pior que o indivíduo seja.

Batman: o cavaleiro das trevas, n. 2. p. 21, 1997.
A defesa do reino
Os cavaleiros da Távola Redonda são antes de tudo servos leais do rei Arthur. Lutam e combatem os vilões que estão nas terras do reino de Camalote.
Nascião temia e amava seu Senhor Jesus Cristo sobre todas as coisas do mundo; e quando chegou a Camalote, saiu este rei Camalis contra eles à batalha, e desbaratou no campo os cristãos. (MEGALE, 1996, p. 130).
Com Batman não é diferente, o Homem-Morcego tem como objetivo único limpar Gotham City, sua cidade natal, do domínio dos muitos criminosos que ali vivem.

Batman: Cálice. p. 30, 2004.

Batman: Cálice. p. 35, 2004.
Considerações Finais
As HQ’s de Batman contêm traços marcantes de intertextualidade com as novelas de cavalaria. Os exemplos mostrados são apenas os mais notáveis entre os arquétipos existentes. Como falado no início, Batman: Cálice (2004) é o melhor exemplo do que seria a intertextualidade desse super-herói para com as novelas de cavalaria. Embora outras revistas, inclusive além das que foram usadas aqui, podem trazer alguns arquétipos específicos.
Mesmo que o conceito de arquétipo pertença a filosofia, não é exclusividade dessa área, “mas também é reconhecido em outros campos da ciência”. (JUNG, 2000, p. 53). É possível um maior estudo de relação intertextual entre literatura e história em quadrinhos combinando os conceitos de arquétipo e intertextualidade.
Com esse estudo, é possível traçar os elementos comuns das narrativas que tratam do herói, a fim de encontrar os elementos específicos da jornada do herói de todos os momentos históricos da literatura universal, inclusive, das novelas de cavalaria e das histórias em quadrinhos de super-heróis.
Referências
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. vol. 1. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2007.
DIXON, Chuck; FLEET, John Van. Batman: Cálice. São Paulo: Panini, 2004.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MEGALE, Heitor. A Demanda do Santo Graal. São Paulo: Imaginário, 1996.
MILLER, Frank; JANSON, Klaus; VARLEY, Linn. Batman: O Cavaleiro das Trevas. vol. 1. São Paulo: Abril, 1997.
MILLER, Frank; JANSON, Klaus; VARLEY, Linn. Batman: O Cavaleiro das Trevas. vol. 2. São Paulo: Abril, 1997.
MILLER, Frank; JANSON, Klaus; VARLEY, Linn. Batman: O Cavaleiro das Trevas. vol. 3. São Paulo: Abril, 1997.
MILLER, Frank; JANSON, Klaus; VARLEY, Linn. Batman: O Cavaleiro das Trevas. vol. 4. São Paulo: Abril, 1997.
MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. Batman: A Piada Mortal. Nova Iorque: DC comics, 1999.
RESENDE, Garcia de. Antologia do Cancioneiro Geral. Lisboa: Ulisseia, 1994.
SAMOYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
SILVA, Ademir Luiz da. Mito Arturiano: do Guerreiro Gododdin ao Santo Graal. In: MARCHINI NETO, Dirceu; NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. (org.). A Idade Média: entre a história e a historiografia. Goiânia: PUC de Goiás, 2012. p. 79-111.
TAYLOR, Tom; RAAPACK, Jheremy. Injustiça: Deuses entre Nós. vol. 17. Nova Iorque: DC comics, 2013.
TAYLOR, Tom; RAAPACK, Jheremy. Injustiça: Deuses entre Nós. vol. 18. Nova Iorque: DC comics, 2013.
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