Cama de livros
- Carlos Neiva
- 17 de jul. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de mai. de 2021

Por muitas vezes a gente tem nosso jeito pessoal julgado pelos outros como estranho e incomum, o que é sempre algo bem chocante, pois, se é natural em nós, então não deveria ser estranho e incomum. Afinal, é o jeito com que lidamos com a vida cotidianamente. Daí vem um sujeitinho estranho e incomum e nos rotula dando um verdadeiro giro copernicano.
Acontece que eu sou professor e tenho uma paixão por livros, o que quer dizer que os tenho em uma boa quantidade. Quando fiz uma mudança, tentei ajeitar alguns livros na pequena prateleira de que me dispunha. Nada muito bizarro, entre vinte e trinta títulos.
Nessa hora veio uma daquelas pessoas super simpáticas querendo enturmar. Acontece que por trás de toda aquela simpatia havia um sujeitinho. Um sujeitinho simpático que observava as caixas com meus pertences de forma analítica. Ao notar a pilha de livros, exclamou “Rensga!”, esse termo tipicamente goiano refere-se a uma atitude de espanto. Começou aí a constatação do incomum, mas a sentença foi completada pelo sujeitinho “Que tanto de livro!”.
Essa afirmação do sujeitinho fez com que eu começasse a me sentir estranho e inadequado. Não estava exagerando na quantidade? Mas aquilo não era nada comparado à biblioteca completa. Por que aqueles livros causaram espanto? De repente, eu tinha voltado para o ensino médio e era de novo o nerd da turma que não conseguia participar bem da aula de educação física e era o último a ser escolhido no time de futebol.
Apesar da viagem no tempo que a fala do sujeitinho me despertou, pude responder que não era nada demais, mas ele continuou surpreso. “Quer dizer que você tem mais?”, disse de olhos esbugalhados. Eu realmente não queria estar tendo aquela conversa. Tentei assentir com a cabeça para ser educado, mas estava sem graça. Por que eu me sentia inadequado? Meus amigos estavam acostumados com aquilo e eles tinham também muitos livros. Eu sempre ia com os colegas da faculdade a feiras e livrarias e sempre saíamos com um bom número. Aquilo era absolutamente normal, mas porque eu em sentia mal? Não sabia responder, o espanto do sujeitinho tinha virado meu mundo de cabeça para baixo.
Acontece que, para meu desespero, o sujeitinho ia abrir a boca mais uma vez. Deu uma olhada nos livros, passou a mão nos de maior espessura e concluiu “Se eu tivesse essa quantidade de livros, ia juntar tudo e fazer uma cama.”, e saiu tranquilamente, satisfeito, aliás.
Eu me sentei, aquilo tinha sido embaraçoso e no final já era cômico e eu já não sabia que sentimento ter. Tudo bem que algumas pessoas não gostam de ler e outras são avessas a livros, mas o que aquele sujeitinho tinha dito era demais para mim. Uma cama de livros? Por que diabos alguém faria uma cama de livros? E mais, é essa então a grande utilidade dos grossos tomos: serem empilhados como blocos de Lego para formar a mobília?
Resmunguei o disparate “uma cama de livros?”. Peguei os livros que o sujeitinho tocara, segurei-os no colo como uma mãe que consola os filhos ofendidos. O olhar estava distante. Pensava em como existem pessoas sem a mínima formação intelectual. Pensava em quantas pessoas tinham aversão a livros e pensava em quantas pessoas nunca tinham lido um livro inteiro na vida, mas que portavam um documento nacional dizendo que eram alfabetizadas. Pensava, enfim, nos problemas da educação no país, mas também na preguiça e pobreza de espírito de cada indivíduo.
Uma cama de livros? Se eu tivesse um sujeito que não sabe o que fazer com uma banana, todos iriam rir dele, pois é um absurdo pensar tal coisa. A banana é uma fruta e serve para comer. Porém, o sujeitinho olhava livros e não compreendia para o que serviam, achava um absurdo que alguém se dedicasse a ler todas aquelas páginas sem ilustrações. Ele pensava então em alguma forma de dar utilidade para aquilo.
Utilidade? Infelizmente, para muitos é assim. O conhecimento não é algo que te faz melhor, que expande sua mente, é algo que precisa ter uma utilidade prática específica, ou não serve. Quantos alunos já me perguntaram para o que iriam usar aquela matéria que eu copiava no quadro negro. Por que caímos nesse utilitarismo? Por que tudo tem que ser para uma aplicação? O conhecimento por si só basta, não?
Eu fazia todos esses questionamentos enquanto as caixas estavam no chão e as malas em cima da cama (que não era de livros), os livros estavam empilhados, fora de ordem, na prateleira onde repousariam. Eu me perguntava o que estava fazendo ali, tinha me sentido de repente inadequado, incomum, peculiar e estranho, era uma espécie estranha que usava um dispositivo estranho cujo funcionamento não se conhece, mas se chama “livro”. O giro copernicano tinha sido feito e o sujeitinho me transformara em um ser alienígena, alienado da realidade onde pessoas normais não tem contato com livros.
Elas eram normais? Bom, eram ao menos a maioria. E na democracia temos o perigo de que uma tolice seja considerada comum se tiver um grande número de apoiadores.
Uma cama de livros! Às vezes me dá vontade de rir do absurdo, às vezes me pego triste com o disparate. Eu podia ser estranho para aquele sujeitinho, mas esse seu comentário foi a coisa mais incompreensível que já ouvi.
Não posso deixar de compartilhar um trecho que o texto me recorda: "As paixões humanas são misteriosas, e as das crianças não o são menos que as dos adultos. As pessoas que as experimentaram não as sabem explicar, e as que nunca as viveram não as podem compreender [...] A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros. Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem se dar conta de que está com fome ou com frio. . . Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna, depois de o pai ou…
Eu estava com um livro de 46 paginas na mão e um colega( ele tem 14 anos) perguntou que livro era aquele e disse, com a maior cara de pau no mundo, que eu não conseguiria ler esse livro inteiro por ser muito grande. Eu disse que tenho livros muito mairoes que esse e ele rebateu que não sabia como eu conseguia e que ele não teria paciencia..... PARA UM LIVRO DE 46 PAGINAS. e ainda deu a desculpa que era de exatas rsrs.
De certa forma também me senti um ET falando com ele. Muito bizarro a mentalidade de algumas pessoas... mas como ele é jovem, ainda há esperanças