A Literatura Fantástica de J. R. R. Tolkien
- Carlos Neiva

- 18 de jul. de 2019
- 5 min de leitura

Em um diálogo televisionado sobre leitura, Vicent von Doren e Mortimer Adler comentavam de um jovem que não gostou de ler Metamorfose, de Kafka, pois não fazia sentido que um homem se metamorfoseasse em um inseto gigante. Não demorou até que eu associasse o caso com aquele grupo de colegas do ensino médio que detestava filmes de fantasia, pois eram “muita mentirada”. A eles eu respondia que se quisesse verdades coerentes eu estudaria para a prova ou sairia na rua observando a rotina enlouquecedora de cada pessoa atarefada. Ambos os casos demonstram uma pobre compreensão da fantasia na nossa sociedade tecnológica.
Apesar de Todorov e outros grandes literatas terem se dado ao trabalho de discorrer sobre a literatura fantástica, creio que ainda há muito que ser estudado e compreendido desse gênero por parte dos leitores “maduros” e também da academia. Mesmo que alguns grandes nomes da literatura fantástica sejam aclamados pela academia, como Jorge Luís Borges e Gabriel García Marquez, alguns outros nomes, dentre os quais o de J. R. R. Tolkien, passam como algo pueril e tolo, pouco digno de uma análise mais séria.
Se alguns leitores acham que o elemento surreal, mágico, não permite fluir uma literatura séria, eu teria que informa-los de que toda literatura grega está permeada de deuses e criaturas mágicas, da mesma forma como todas as novelas de cavalaria e autos medievais. De seres mágicos Dante Aligheri povoa o inferno e Shakeaspare utiliza-se de um fantasma em Hamlet e de bruxas em Macbeth. Machado de Assis traz um Cubas do túmulo para contar sua vida e Érico Veríssimo traz todo um batalhão de defuntos para o coreto de Antares.
A lógica científica não deve, portanto, ser um critério de avaliação para a literatura, pois esta faz parte do discurso poético, que, segundo Aristóteles, está preocupado com o possível e com o genérico, não com o factível e específico. G. K. Chesterton coloca a fantasia dentro do chamado “teste da imaginação” onde o que ocorre é o possível de se imaginar, independente do que é real. Na “terra dos elfos”, tigres nascem em árvores pendurados pelas caudas e uma maçã pode não ter caído sobre o cientista Newton, mas saído voando em busca de um nariz menos científico.
Então todos esses adeptos da “mentirada” são apenas uns baderneiros que querem distorcer a realidade? O que se ganha com essa simples possibilidade, tão fina camada de verdade? A resposta é o próprio G. K. Chesterton que dá em seu célebre livro Ortodoxia: “Pode-se escrever uma história de um herói entre dragões, mas não uma história de um dragão entre dragões. O conto de fadas aborda o que um homem são fará em um mundo louco: o romance realista, com toda sua sobriedade, mostra-nos o que um indivíduo essencialmente lunático fará em um mundo estúpido”.
E é exatamente aqui que entra a fantasia de Tolkien. Ao contrário de muitas outras obras do gênero que visam um certo “escapismo” dessa realidade frustrante e cansativa (o que atrai a crítica da academia), o que Tolkien quer com sua fantasia é explicar a realidade no seu sentido mais profundo e, eu diria, mágico. Para o autor de O Senhor dos Anéis, a fantasia não é uma inimiga da razão científica, mas uma parceira. Sem a razão a fantasia murcharia, mas sem a fantasia a razão seria enlouquecedora, só juntas é que se pode observar a realidade com aquela admiração infantil de quem percebe o mundo como distinto de si. Sobre isso, Tolkien afirma em um ensaio sobre os contos de fadas: “Precisamos encontrar o centauro e o dragão, e talvez depois contemplar de repente, como os antigos pastores, os carneiros, os cães, os cavalos – e os lobos. Os contos de fadas nos ajudam a realizar essa recuperação. Nesse sentido só o gosto por eles pode nos tornar, ou manter, infantis”.
Assim, o diferencial da fantasia de Tolkien em relação a outras semelhantes em números de vendas, é que o filólogo estava preocupado não só em fazer uma literatura esteticamente artística, tomando muito cuidado com as línguas que “brincava” de criar (sem falar que também preenchia a narrativa de poesias e canções), mas em apresentar a realidade, afinal, o autor coloca na boca de Aragorn: “A terra é verde, você diz? Este é um grande assunto para as lendas, embora você pise nela sob a luz do dia”. Diferente do País das Maravilhas, da Terra do Nunca, de Oz, de Nárnia, de Hogwarts e outros semelhantes, a Terra-Média não é um lugar para se fugir da realidade, mas para encontrá-la. Afinal, não é sua terra fantástica chamada Terra-Média (Middle-Earth)? Esse termo é a tradução de “Midgard”, da mitologia nórdica que o catedrático tanto estudava. Apesar de estar cheia de Mayares, Valares, elfos e anões, sua terra não se chama Asgard, Vanaheim, Alfheim ou Nidavelir, mas Midgard. A Terra-Média não é outro mundo, é o nosso mundo dos homens.
Aristóteles defendia que a poesia é mais abrangente que a história, pois a narrativa histórica de uma guerra diz apenas dos fatos daquele tempo passado, enquanto a poesia que canta a batalha é muito mais universal e diz respeito a todos os homens que virão. Chesterton aprendeu com os elfos que os contos de fadas tinham uma lição antiga e muito mais abrangente que a existência de seres fantásticos, na fórmula sintetizada de Neil Gaiman: Contos de fadas não são reais porque ensinam que dragões são reais, contos de fadas são reais porque ensinam que dragões podem ser derrotados. J. R. R. Tolkien descobriu na fantasia uma forma de exaltar essa realidade tão extraordinária quanto a dos elfos: “Ao forjar Gram o ferro frio foi revelado; ao fazer Pégaso os cavalos foram enobrecidos; nas Árvores do Sol e da Lua, raiz e tronco, flor e fruto manifestam-se em glória”.
Em O Senhor dos Anéis, a luta entre o bem e o mal (tão positiva quanto batatas) é reapresentada ricamente e muitas verdades se fazem presentes entre os hobbits, anões, elfos, orcs e magos. De cada personagem ecoa a sabedoria típica dos contos de fadas, daquelas que as avós passavam aos descendentes como forma democrática de fazer voz à ética universal e aquilo que mais aspiramos como bom e que conduz à felicidade. Afinal, o certo é certo e o errado é errado seja em qualquer um dos nove mundos, como diz Aragorn aos soldados de Rohan: “O bem e o mal não mudaram desde o ano passado; nem são uma coisa para os elfos e anões e outra para os homens. É papel de um homem discerni-los, tanto na Floresta Dourada como em sua própria casa”.
Originalmente publicado na Revista Newman Brasil, número 01, em Março de 2019.








bom texto, gostei. Já experimentei isso em minha vida, aprendi muito sobre com tais obras.